Ao refletir sobre o conceito de rastro, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin o define como “um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações” (Gagnebin, 2009, p.113). Trata-se de uma marca deixada “pelo acaso” e que carrega em si uma presença ausente, por isso, para decifrar o rastro é preciso olhar para além de sua presença concreta enquanto marca, é preciso enxergar nele o processo que o produziu e os fantasmas que ele deixa como sintoma no presente. Trago aqui a ideia de rastro em Gagnebin a fim de cruzá-lo com o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin, que lança um olhar crítico sobre o avanço tecnológico e observa como ele, em nome do progresso, vai deixando suas marcas no homem e na natureza. Em um dos fragmento de “Rua de Mão Única” Benjamin escreve:
Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançados no campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, o espaço aéreo e as profundezas marítimas rugiram de hélices, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Esse grande cortejo feito ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensava expiar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. A dominação da natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda a técnica. Quem, porém, confiaria em um mestre da palmatória que declarasse a dominação das crianças pelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações, e, portanto, se quisermos falar de dominação, a dominação das relações geracionais, e não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da natureza: é a dominação da relação entre natureza e humanidade. (Benjamin, 2012, p.69)
Nesse fragmento Benjamin observa os efeitos do progresso técnico que, no esteio do capitalismo e da sociedade de consumo, demanda cada vez mais matéria prima da natureza. A técnica que transforma o “leito de núpcias em mar de sangue” pode ser lida como uma alegoria da catástrofe ambiental para qual a humanidade caminha em nome do lucro e do progresso. A previsão de Benjamin sobre nosso destino enquanto humanidade continua atual nos dias de hoje, mas em uma velocidade que nem mesmo ele poderia imaginar. Basta pensar na destruição de nossas florestas, de nossas matas, de nossos rios, que são progressivamente consumidos pelo avanço das monoculturas, do extrativismo, do concreto. As marcas da degradação são o rastro de uma civilização que cria e destrói e destrói para criar, do sistema implacável do capitalismo, dessa presença devastadora que nos dá em troca a consequente ausência, em um futuro próximo, dos meios naturais que precisamos para sobreviver. Essas marcas do progresso, analisadas por Benjamin no início do século XX, são as mesmas que hoje, quase um século depois, o filósofo e ativista Ailton Krenak segue denunciando. Krenak vê esses rastros como pegadas profundas, cujas marcas/feridas são cada vez mais difíceis de serem curadas.
Neste momento, estamos sendo desafiados por uma espécie de erosão da vida. Os seres que são atravessados pela modernidade, a ciência, a atualização constante de novas tecnologias, também são consumidos por elas. Essa ideia me ocorre a cada passo que damos em direção ao progresso tecnológico: que estamos devorando alguma coisa por onde passamos. Aquela orientação de pisar suavemente na terra de forma que, pouco depois de nossa passagem, não seja mais possível rastrear nossas pegadas está se tornando impossível: nossas marcas estão ficando cada vez mais profundas. (Krenak, 2020, p.52)
É preciso olhar para essas pegadas/rastros como nos sugerem Gagnebin e Benjamin, através de um olhar crítico, um olhar capaz de enxergar suas tensões latentes. Assim conseguiremos ver que ferir a natureza em nome do progresso da humanidade tem um preço. Conseguiremos entender que não adianta mais fechar os olhos e aceitar o negacionismo. As evidências são concretas e sentidas a cada inundação provocada pelo excesso de chuva, a cada onda de calor extremo e secas que deixam as matas suscetíveis às queimadas, a cada rio que morre por contaminação. Mas não basta acreditar que estamos indo em direção a um caminho sem volta, é preciso entender que existe uma máquina que opera as engrenagens da destruição. É preciso apontar os culpados. Esse é movimento efetuado por Krenak, ele denuncia a máquina, entende o sintoma deixado por seu rastro e aponta uma cura.
Com seu olhar arqueológico, Krenak vê nas marcas deixadas pelo ser-humano na natureza o tensionamento entre passado, presente e futuro. Ele entende que a cada pegada profunda deixada no presente, chegamos mais perto de nossa própria ausência enquanto humanidade no futuro. Como proposta para adiar esse fim, ele nos convida a olhar para nossos povos originários, esses povos que sabiamente não fazem distinção entre o humano e a natureza, então a protegem e respeitam da mesma maneira como o fazem com a vida humana. Esse é o passado/tradição no qual devíamos nos espelhar e conservar para tentarmos vislumbrar no futuro uma relação mais equilibrada com o meio ambiente.
Começo esse ensaio a partir de uma reflexão sobre questões ambientais a fim de traçar uma relação entre dois filmes que fazem um movimento parecido ao de Krenak, ou seja, olham os rastros visíveis da degradação da natureza e lançam um olhar ao passado em busca de esperança para o futuro. Os filmes são o curta-metragem de animação “Nonna”, dirigido por mim, Maria Augusta Vilalba Nunes, e co-roteirizado por Anne Salles Oltremari e o longa ficção “Apart Horta” dirigido e roteirizado por Cecilia Engels. Duas histórias que se interseccionam, sobretudo, na ideia de resistência de uma consciência ecológica que multiplica suas raízes a partir do afeto familiar.
Em “Nonna” acompanhamos a história de Ana em duas fases de sua vida. A conhecemos criança enquanto observa, impotente, aos impactos que o uso excessivo de agrotóxicos provoca na pequena comunidade rural onde vive. Ela também lida com luto pela perda de sua avó, a Nonna, agricultora vítima dos efeitos do veneno em seu corpo. As marcas de degradação que Ana observa em seu presente são os indícios do futuro de destruição que veremos quando ela, já adulta, volta ao espaço de sua infância. Ana agora é engenheira ambiental e está ali para pesquisar e coletar amostras do estranho bioma que tomou conta do lugar. Tudo está contaminado e sem vida, o ar ali também já não se respira mais, por isso Ana usa uma roupa de proteção. Enquanto caminha, ela se depara com a casa da Nonna. Por fora tudo está destruído, mas quando Ana entra, percebe, para sua surpresa, que a casa está viva. As plantinhas de sua avó ali permanecem, verdes e vibrantes. Ana tira o capacete da roupa de proteção, respira fundo e sorri. A presença de sua Nonna permanece como rastro na casa e em Ana, que acolheu dentro de si o amor por suas raízes campesinas e pela preservação da natureza.
Do cenário rural de “Nonna” me dirijo a São Paulo, onde desembarco junto de Nazaré, que chega na cidade para visitar seu irmão Natanael. Ambos são baianos do interior, de um espaço onde se planta e se colhe, onde o contato com o alimento ainda é afetuoso e próximo. No entanto, esse afeto nutrido por Nazaré não existe mais em Natanael, que já está totalmente dedicado ao modo de vida da cidade grande e diz que nem mesmo sente saudade da vida antiga. No apartamento do irmão, ela se depara com falta de alimento fresco e de verde – ele não tem tempo de cuidar de planta, muito menos de cozinhar. Nazaré logo trata de dar um jeito na situação e vai na feira. Do alimento que compra, ela tira mudinhas, que vai plantando e transformando o apartamento em uma pequena horta. Mas, Natanael, absorto pelo ritmo de São Paulo, focado no trabalho e somente nele, se incomoda com as transformações trazidas pela irmã, pois estão atrapalhando sua rotina.
Os valores que Natanael e Nazaré atribuem a cidade grande e ao interior são marcados por afetividades distintas, por isso seus pequenos conflitos giram sobretudo em torno dessa diferença. Natanael, por exemplo, sobrevaloriza a cidade, seu ritmo acelerado, a dedicação excessiva ao trabalho. Enquanto da perspectiva de Nazaré, a falta de contato com a natureza e o excesso de trabalho impede as pessoas de olharem com mais afeto e atenção para si mesmas e para o mundo que as circunda. O conflito dos irmãos me leva a refletir sobre a diferença entre o tempo do progresso desenfreado do modelo de produção capitalista e o tempo de espaços que resistem “às margens” – comunidades rurais, ribeirinhos, povos da floresta – que ainda mantêm e valorizam um contato afetivo e/ou de subsistência ligado à terra e a natureza. Se adentrarmos mais a fundo nessa dialética entre metrópole/Interior é possível observar que os tensionamentos são também ordem do progresso técnico. A cidade, considerada como moderna, avançada e lucrativa, se contrapõe ao campo e suas técnicas tradicionais, consideradas economicamente obsoletas e pouco competitivas. Entendo que o subtexto de “Apart Horta” reflete um campo de disputa político-ideológico, onde os elementos culturais e sociais dominantes impõem uma distinção entre o que é lido como “moderno” e o que é entendido como “atrasado”.
É preciso também observar que quando me refiro ao interior, ao campo, não estou falando do modelo agrário do famoso “O agro é Téc, o agro é Pop“. O agro téc vende-se como pop mas caminha lado a lado do sistema de produção predatório. Esse modelo, além de desvalorizar o pequeno agricultor, é também agente do êxodo da população do campo para a cidade, já que o processo de mecanização substitui cada vez mais o trabalho humano. É a tecnologia desse mesmo agro que também utiliza aviões para pulverizar veneno em seus vastos campos de monocultura. Esses aviões, fruto de nosso avanço tecnológico, que nos leva aos céus e nos desloca rapidamente de um lugar a outro, tornam-se nesse contexto, uma máquina de destruição. O veneno despejado por ele deixa um rastro de contaminação que assola comunidades como aquela em que Ana e sua Nonna viviam. Mas esse rastro não se limita ao espaço rural, ele se estende à cidade através de alimentos com alto índice de presença de veneno, da contaminação e empobrecimento das terras que poderão no futuro deixar de produzir esses mesmos alimentos – assim como acontece na comunidade de Ana. Deixa seu rastro também através da contaminação das águas e tantos outros fatores que atingem a todos, independente do espaço geográfico em que vivem.
Mas se existem rastros de destruição, existem também focos de resistência, e eles são a força discursiva tanto de “Nonna” como de “Apart Horta”. Nazaré, por exemplo, é um dispositivo para histórias de pequenas resistências verdes em meio ao concreto de São Paulo. No prédio onde Natanael mora ela conhece Janaína, que faz compostagem em casa e entende a importância de reaproximar as pessoas da origem do que elas comem, uma dinâmica que parte da comida mas que vai se ramificando para outras questões ecológicas. Junto a Janaína e Nazaré unem-se outros moradores que começam um movimento para criar uma horta na laje do prédio. O gesto de Nazaré também reaproxima Natanael de sua origem e por fim ele deixa-se levar pela vida que as plantinhas trazem ao seu apartamento. Entre a história de Nazaré e Natanael, o filme também faz inserções de trechos de pessoas reais que cultivam hortas urbanas, documentando assim outros lampejos de resistência verde em meio ao concreto da cidade.
Já a Ana de “Nonna”, assim como Nazaré, também simboliza uma possibilidade de mudança. Em seu caso, ela utiliza a ciência como meio para tentar preservar e recuperar o meio ambiente, demonstrando assim que o desenvolvimento tecnológico e científico pode ser usado também em favor da natureza. Desse modo, temos que Ana, Nazaré, os agricultores de hortas urbanas e outros tantos movimentos, são signos de esperança em meio ao progresso predatório que ignora, em nome do lucro, os problemas ambientais que provocam. Esses gestos ecológicos podem parecer pequenos à primeira vista, mas se forem somados a tantos outros, se tornam gigantes. Krenak está atento a esses movimentos e observa sua importância.
Em diferentes lugares tem gente lutando para este planeta ter uma chance, por meio da agroecologia, da permacultura. Essa micropolítica está se disseminando e vai ocupar o lugar da desilusão com a macropolítica. Os agentes da micropolítica são pessoas plantando horta no quintal de casa, abrindo calçadas para deixar brotar seja lá o que for. Elas acreditam que é possível remover o túmulo de concreto das metrópoles. (Krenak, 2020, p.12)
Tendo em vista a colocação de krenak, entendo que Ana e Nazaré são agentes dessa micropolítica. Elas são também o dispositivo que lança um olhar crítico para o presente e ao mesmo tempo nos leva ao passado, pois sua consciência ecológica é também reflexo de uma herança familiar e afetiva de outros tempos. Em Ana vemos vestígios dos valores da Nonna, em Nazaré vemos esses valores sendo transmitidos a Natanael. Suas histórias nos fazem ver a necessidade de olhar os gestos daqueles que nos precederam e perceber neles a importância de se valorizar a terra e recuperar a harmonia entre o ser-humano e natureza. É esse movimento que Krenak nos oferece ao olhar para suas próprias origens indígenas. Em uma passagem de “A vida não é útil” ele reflete sobre essa questão a partir de uma tradição de seu povo chamada “suspender o céu”. Segundo ele, para se alcançar essa suspensão é preciso acompanhar o ritmo da mãe terra, nos inserir como parte desse ritmo e romper com a distinção entre o humano/natureza.
Suspender o céu é ampliar o horizonte de todos, não só dos humanos. Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que nossos ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas por dia para proverem tudo que era preciso para viver. Em todo resto do tempo você podia cantar, dançar, sonhar: o cotidiano era uma extensão do sonho. E as relações, os contratos tecidos no mundo dos sonhos, continuavam tendo sentido depois de acordar. Quando pensamos na possibilidade de um tempo além deste, estamos sonhando com um mundo onde nós humanos teremos que estar reconfigurados para podermos circular. Vamos ter que produzir outros corpos, outros afetos, sonhar outros sonhos para sermos acolhidos por esse mundo e nele podermos habitar. Se encararmos as coisas dessa forma, isso que estamos vivendo hoje não será apenas uma crise, mas uma esperança fantástica, promissora. (Krenak, 2020, p.25)
Krenak, assim como nossas personagens, traz uma perspectiva de esperança, são lampejos de vida na escuridão de um futuro que parece não se desenhar muito promissor. Movimento que, como ele mesmo afirma, é preciso ser feito na micropolítica, pois a macro, dominada e rendida ao chamado do capital, do consumo e do poder, dificilmente nos escutará. Das pequenas resistências pode-se criar um grande movimento. Um movimento necessário e um despertar possível, talvez a única saída para que consigamos resistir e subsistir nesse mundo.
[bibliografia]
BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.2)
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.