Os diálogos são cadenciados, dotados de pausas, como nos balões das histórias em quadrinhos. Os personagens são cartunescos. Os cortes são rápidos. Mesmo quando há planos-sequência, a câmera na mão imprime a sensação de elipse a cada movimento brusco. Por todo o filme há sarjeta, portanto. A sarjeta nos quadrinhos, intervalo entre quadros, adapta-se pela montagem ostensiva. Resta o som, que alterna entre o silêncio da leitura de um livro e o grito gráfico onomatopeico.
Esse é o cinema de Rogério Sganzerla.
Toda sua obra cinematográfica é uma história em quadrinhos. Mesmo não sendo.
Existe, em toda adaptação, uma economia poética, a qual implica que na passagem de uma mídia a outra algo se ganhe e algo se perca. Isso é bastante empírico, qualquer pessoa é capaz de apontar essa operação. Contudo, o grande problema reside no fazer as contas, isto é, contabilizar quais foram os ganhos e quais foram as perdas. E é precisamente aqui que a economia poética mostra-se bastante diferente da economia ordinária das relações materiais: um indivíduo, diante de uma adaptação cinematográfica de um clássico da literatura, pode, por exemplo, facilmente apontar que houve a perda de um personagem, ou o ganho de uma subtrama inexistente na obra original.
Porém, essas observações são bastante restritas, geralmente ao nível do enredo, do qual é feito um impreciso inventário de tramas, personagens, palavras e peripécias, e, a partir deste, uma análise da “balança poética” de uma obra, como se fosse a balança comercial de um país na sua relação com uma nação estrangeira. A metáfora não é de todo ruim, pois cada mídia diante de outra lida com o estrangeiro. Porém, eis aqui o erro comum do raciocínio: a mídia não intercambia objetos em sua fronteira, mas avança em território alheio. Não na lógica da invasão, mas da evasão. Toda forma de arte precisa sair de si, encontrar um ponto de fuga ontológico que convirja com aquela outra forma de arte. Em outras palavras, o devir poético da arte.
Por isso, a economia poética da adaptação precisa reconsiderar os ganhos e perdas a partir de um paradigma distinto. Pois ele não se dá em um território, está mais para um desterritório, um lugar onde duas mídias escapam de si mesmas e, nesse contato, se contaminam, são infectadas, cada uma pelos traços da outra. Aliás, o significante mídia não pode ser aqui usado de maneira gratuita. Pensar a mídia também não é pensar um objeto, mas uma existência do meio, um lugar no qual tudo que é vivo precisa ingressar para se fazer sensível. Dito de outro modo, a mídia é a territorialização de uma forma de vida, e só há formas de vida quando elas ingressam o meio que lhes abriga e condiciona.
Nesse sentido, a arte não é muito diferente, pois ainda que seja um objeto material, carrega as potências das formas de vida por refazer o mesmo processo e, o mais importante, evidenciá-lo enquanto tal. Essa é a diferença entre a arte e a técnica, afinal, a primeira traz para si a evidência do meio, enquanto a segunda desaparece em seu fim. Cabe acrescentar, a história da humanidade é também a história de tentar dar finalidade aos homens.
Então se as mídias, materializações do meio, formas de arte sem fim, territorializações, escapam do simples estatuto do objeto, como produzir uma economia poética da adaptação, como simplesmente apontar o que se ganha e o que se perde em uma adaptação? Considerando que toda adaptação é a evasão da mídia de sua territorialidade, é abertura ao devir, desterritorialização, como é possível ainda insistir em uma análise das propriedades de uma mídia, de modo a apontar as perdas e ganhos? A economia poética da adaptação, deste modo, está menos para uma diferença de natureza e mais para uma diferença de intensidades. O que parece se perder eventualmente em uma adaptação quadrinística de um filme, por exemplo, é uma intensidade cinematográfica em quadrinhos.
Comecemos pela história de um fracasso. Bastante pessoal, diga-se de passagem. Quando criança, eu carregava para todo canto a adaptação em quadrinhos de Batman (1989), filme dirigido por Tim Burton. O roteiro de Dennis O’Neil era bastante fiel ao filme, e a arte de Jerry Ordway, com cores de Steve Oliff, era cuidadosa com as fisionomias, figurinos e paleta de cores. Todas remetiam ao filme. Na primeira página, há um rolo de filme que logo se transforma em uma página em quadrinhos. Todas essas óbvias reiterações da adaptação enquanto remetência à obra original me agradavam, pois eu tinha ali um pedaço do filme, um derivado seu, e, ao mesmo tempo, reforçavam uma falta, uma ausência colossal: isso não é o filme, é uma experiência de intensidade menor dele.
Existe toda uma historiografia das adaptações bem comportadas, obedientes, apequenadas de qualquer grandeza intensiva, de longa tradição nos quadrinhos. Revistas como a estadunidense Classics Illustrated ou a brasileira Edição Maravilhosa são exemplos recorrentes. Contudo, há de se lembrar da ruptura: do momento preciso em que houve a percepção cada vez mais nítida de que quadrinhos e adaptação traziam potências novas e ainda parcialmente inexploradas. Na América Latina, foram decisivos para isso os quadrinhos de Alberto Breccia, com suas adaptações de Lovecraft, Allan Poe, Quiroga. Já no cinema, o gênio do crime foi Rogério Sganzerla.
O cinema marginal, o tropicalismo e a contra-cultura ocidental tinham nas histórias em quadrinhos uma forma de arte de homenagem e contestação. Interseccionando a abordagem fetichista da Pop Art com a expressão artístico-política dos quadrinhos undergrounds, Gilberto Gil e Caetano Veloso compuseram sua Batmacumba (1968). Nesse mesmo ano, Sganzerla lançava seu O Bandido da Luz Vermelha, um filme intensamente quadrinístico do início ao fim. Ainda que não fosse a adaptação de uma história, era o de uma mídia. O bandido é saído dos quadrinhos de faroeste, inclusive com o lenço no rosto; a São Paulo é a Nova Iorque de Dick Tracy e seus derivados; os diálogos fragmentários são balões de pensamento em voz alta; os movimentos trêmulos de câmera são elipses de reenquadramento da ação; e o final é o mesmo de um típico quadrinho de ficção científica alegórico-político da EC Comics. Não por acaso, em 1969, um ano depois, Sganzerla, na companhia de Álvaro de Moya, lançaria dois curtas documentários, História em Quadrinhos e Quadrinhos no Brasil. Esse traço jamais deixaria seu cinema. O Signo do Caos (2003), último filme de Sganzerla, é menos uma homenagem ao cinema de Orson Welles e mais às referências em comum que ambos tinham, isto é, os quadrinhos e o rádio dos anos 1920 e 30.
Percebe-se, então, na adaptação dos quadrinhos para o cinema que Sganzerla repetidamente faz, a intensificação de uma mídia na outra. Os quadrinhos são intensificados quando devêm no cinema de Sganzerla, ele ganha quando se perde, ou perde sua propriedade quando ganha uma nova forma de ser. Trata-se de uma contradição convergente, ou melhor, aparente, pois isso apenas é uma contradição para uma economia dos objetos. Afinal, quando se refere à adaptação na economia poética, são os fluxos e as intensidades que mensuram e complicam os ganhos e perdas de uma operação. Daí a força evasiva de Sganzerla, intensamente um quadrinista.