A revista Além (da) Imagem foi convidada para participar do Observatório da TransforME Mercado Cinema LGBT+ (1) de 2022, onde diversos parceiros estão trazendo seus registros e impressões sobre o que aconteceu no evento. Ao vermos a temática da mesa de abertura, “Uma nova retomada?”, nós vimos que o debate era super relevante e adoraríamos trazê-lo para nosso espaço, então claro que aceitamos o convite.
Qual a proposta da mesa?
“A Retomada do Cinema Brasileiro marca um período de nossa história em que o setor voltou a produzir após o enorme desmonte sofrido com a extinção da Embrafilme no governo Collor. Diante de um cenário de terra arrasada deixado pelo desastroso governo que chega ao fim e esperançoso com a troca da presidência do país, hoje o cinema brasileiro parte novamente para uma retomada? Este painel propõe uma retrospectiva do pós-golpe de 2016 até os dias atuais, analisando o passado para traçar caminhos de reconstrução e potencialização. A atividade conta com o apoio da API, Associação das Produtoras Independentes do Brasil.”
O que foi falado?
Cíntia Domit Bittar, a mediadora da mesa, iniciou a conversa falando que o audiovisual sempre deve ser considerado um aliado no desenvolvimento do país, independentemente da ideologia do governo, pois o audiovisual e a cultura são temas de construção de Estado e de nação. Cíntia chamou a atenção que o objetivo da mesa é relembrar os últimos seis anos de lutas do setor, mas também de pensar no futuro como uma chance de não só retomarmos o que tínhamos, mas de avançarmos ainda mais.
Bruno Victor disse que é muito importante ter uma reflexão sobre o recorte de gênero, raça e sexualidade nessa retomada para que haja filmes mais diversos. Segundo pesquisas recentes, quem mais dirige e produz longas no país são homens cisgênero brancos.
“Será que a gente quer de fato uma retomada ou uma reconfiguração do cinema nacional para deixá-lo menos desigual?”
Bruno falou que já houve algumas iniciativas de fomento ao audiovisual com temáticas LGBT+ como o edital das TVs públicas, mas que tais políticas públicas também devem pensar na configuração das equipes dos projetos, pois não adianta contemplar projetos com tais temáticas se as equipes não forem representativas.
Alfredo Manevy quis destacar três momentos da História do Brasil que exemplificam a relação do setor audiovisual com as políticas públicas (ou a falta delas). Na ditadura civil-militar, houve uma oposição muito forte à cultura e o sufocamento da democracia, mas, ao mesmo tempo e dentro das contradições daquele período, também foram criadas a EMBRAFILME (2) e a FUNARTE (3) em nome de um desenvolvimento econômico do país. Tais instituições permitiam que algumas produções cinematográficas fossem produzidas. Foi também durante a ditadura que os filmes brasileiros alcançaram a marca de 30% das telas dos cinemas graças ao mecanismo de cotas de telas, criado por Getúlio Vargas em 1932, que consiste na obrigatoriedade de as salas exibirem uma porcentagem de filmes nacionais. Este mecanismo sempre foi cumprido pelos governos brasileiros até o governo Bolsonaro, que ficou um ano sem cumprir, e depois cumpriu de forma torta.
Outro período histórico que Manevy relembrou foi o período Collor, que acabou com a EMBRAFILME como primeiro ato do governo. Este foi um momento de implosão do setor audiovisual brasileiro. Quem operou esse desmonte foi Ipojuca Pontes, um cineasta que era ministro da cultura na época. Não é coincidência que, em 1991, Pontes escreveu um livro que foi prefaciado por Olavo de Carvalho.
“Lá atrás, em 1991, esse pensamento de extrema direita que olha a cultura e o cinema (as possibilidades do país de ter uma expressão própria) como algo a ser combatido, esse pensamento que nos integra de forma violenta ao capitalismo internacional, submetendo as pretensões de soberania, de liberdade, de diversidade, de democracia, a um capitalismo selvagem e brutal da extrema direita, este pensamento, esta lógica, tem uma genealogia que é muito importante resgatar, pois a gente entende que essa construção é de longa duração, não é uma coisa que surgiu em 2016. O governo Bolsonaro é um capítulo, o mais agressivo, desta história.”
É bom lembrar que até Collor recua em um momento em que estava cercado politicamente e chama o Sérgio Paulo Rouanet para ser ministro da cultura, que cria a lei Rouanet (4) (posteriormente demonizada por Bolsonaro). Portanto, mesmo o governo Collor foi um período menos agressivo para o setor cultural do que foram esses últimos quatro anos que vivemos.
Para Manevy, é olhando para esta história que entendemos quais os desafios de futuro que temos para consolidar uma sociedade democrática. A cultura e o cinema têm um papel importante nesse projeto de país. Manevy falou que mais do que pensar os mecanismos de reconstrução da indústria cinematográfica, temos também que pensar no nosso lugar de promover a diversidade, a igualdade e a justiça social. Que o desenvolvimento do setor seja um eixo de geração de emprego e renda e que distribua recursos para trabalhadores de todas as regiões do país.
Por fim, Manevy também lembrou que não temos como fugir da regulamentação do Video on Demand, pois em outros países, onde há essa regulamentação, ela retroalimenta as produções independentes.
Ivan Melo disse que já viveu o começo do desmonte quando era diretor artístico do polo cinematográfico de Paulínia (5) quando um prefeito de direita, em 2016, acabou com o polo que havia sido criado por um prefeito de esquerda. Ivan falou sobre a oligarquia cinematográfica e disse que o ministro da cultura que assumir terá que enfrentar essa oligarquia. Segundo Ivan, é ela que proíbe que incluamos pessoas mais diversas nas equipes e que contemos nossas histórias.
Ivan comentou sobre a lei Aldir Blanc e disse que se impressionou em como conseguimos produzir com tão pouco, pois o objetivo da lei era somente que não morrêssemos de fome. Por a lei não exigir currículos de bilheterias ou festivais, o poder da oligarquia não nos impediu de receber os recursos. A lei só exigia que contratássemos pessoas que precisavam de dinheiro, e isso permitiu que milhares de ótimas obras fossem produzidas.
“Nenhum de nós conseguiu definitivamente enfrentar as oligarquias, e se a gente não consegue nem enfrentar a oligarquia próxima de nós, imagina esses americanos e essas 3500 salas de cinema disponíveis para eles, imagina esse poder dos streamings agora? É bem complicado.”
Por fim, Ivan falou que devemos fortalecer nossas conexões com outros países latino-americanos e ele deseja que voltem os editais de co-produção entre estes países.
João Andrade começou falando que no início da pandemia ele era diretor da Spcine (6), onde conseguiu criar um espaço de respiro para a cidade de São Paulo em meio ao desmonte das políticas públicas no âmbito nacional. João saudou a API e a APAN (Associação dos Profissionais Negros do Audiovisual), que contribuíram muito para o desenvolvimento de políticas públicas mais inclusivas que promovessem a diversidade. Tais políticas criadas na SPCine foram implantadas também em Salvador, na RioFilme e no ProAc.
“Não existe possibilidade de retomada em 2023 se não levarmos em conta a diversidade, a equidade e a inclusão.”
João falou que a ANCINE deve voltar a utilizar o OCA (Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual) para fazer pesquisas. O estudo mais recente, de 2017, dizia que não havia nenhuma diretora negra dirigindo, este ano tivemos o lançamento de pelo menos quatro ou cinco, como João afirmou. Portanto, é preciso ter dados atualizados para o desenvolvimento da política cultural.
João falou que nos últimos anos na Spcine ele viu várias produtoras experientes sofrerem por causa do apagão do Fundo Setorial Audiovisual e que os mecanismos de coarranjos regionais da ANCINE devem ser retomados. João falou que a ANCINE gerou uma insegurança jurídica muito grande nos últimos anos, o que desestimulou diversas produtoras. Isso só fortalece as oligarquias e enfraquece as políticas públicas. Portanto, João defendeu uma organização e coesão da sociedade civil e das entidades para que conquistas que foram ganhas em anos anteriores sejam retomadas e melhoradas.
Cíntia fez comentários gerais a respeito da fala de cada um dos participantes. Disse que ninguém responde pelo edital das TVS públicas, nem ANCINE, nem SAV nem BRDE. Afirmou que ele deveria ter sido prorrogado automaticamente pela Aldir Blanc, pois a lei foi prorrogada, mas a ANCINE entendeu que não. Disse que a API já enviou ofício à ANCINE, mas não recebeu resposta. Em falando de TVs públicas, Cíntia falou do desmonte da EBC, Empresa Brasileira de Comunicação, e disse que ela deve ser reconstruída para chegar ao status que merece.
Aproveitando o resgate histórico que Manevy fez, Cíntia disse que o período Temer foi de desmonte com um viés entreguista. O de Bolsonaro foi de um obscurantismo com requintes de crueldade, com secretário da cultura fazendo apologia ao nazismo.
Sobre as oligarquias, Cíntia falou que elas querem que a ANCINE saia do MinC e vá para o Ministério da Economia.
“Porque o que a API vem construindo, a APAN e essas novas entidades que estão sim fazendo diferença na política cultural, a gente vai ter mais acesso onde? No MinC ou na Casa Civil ou Economia? Então há também esse tensionamento de forças. É por isso que para os próximos quatro anos eu entendi uma coisa muito importante: a gente não arreda mais o pé do Congresso, nem do Executivo e estamos com o pé lá no Judiciário também.”
Da fala de João, Cíntia chamou atenção da importância de ter pesquisas que gerem dados para usar de argumentação para a melhoria de políticas públicas, pois só poderemos reconstruir trazendo luz aos dados.
A retomada que buscamos
A Além (da) Imagem nasceu no início de 2021, no meio do desgoverno Bolsonaro, graças a um edital municipal de cinema. A vontade de criá-la, porém, vinha de muito antes. Promover o conhecimento sobre a feitura do cinema, trazer reflexão sobre as obras e assuntos que elas abordam, provocar o olhar crítico a respeito do que assistimos, sempre foram nossos objetivos, nossos sonhos, mas só conseguimos alcançá-los neste mundo capitalista quando alcançamos também os recursos que nos ajudaram a dedicar nosso tempo para eles (que nem foram tão grandes, mas foram um incentivo).
Após a finalização do projeto, no final do mesmo ano, a revista entrou em um período de dormência em que nos dedicamos a outros projetos, de produção de filmes, que também amamos e que contribuem para a sociedade de outras formas. Entretanto, a vontade de manter a revista viva sempre esteve presente em nós.
Esperamos, então, que a retomada do setor cultural seja também uma retomada da nossa revista. Que tenhamos recursos para produzi-la. Que falemos mais dos filmes que estão por vir (e daqueles que já estão por aqui), que ofereçamos este espaço para realizadores, pesquisadoras, gestores, artistes, compartilhem suas visões de mundo e da arte, que contribuamos em nossos textos e imagens para uma sociedade mais democrática, equânime e diversa.
Quem participou da mesa:
Mediação de Cíntia Domit Bittar
Cineasta, sócia na Novelo Filmes (Florianópolis, 2010 – ), produtora liderada por mulheres, na qual atua principalmente como diretora, produtora, roteirista e montadora. Diretora na API – Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro; vice-presidenta do Santacine – Sindicato da Indústria Audiovisual de Santa Catarina; titular pelo Audiovisual no Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis; membra-fundadora da elaSCine – Mulheres do Audiovisual Catarinense.
Bruno Victor
Formado em Audiovisual pela UnB e mestrando em Multimeios pela Unicamp. Co dirigiu o curta Afronte, documentário exibido em Havard. Co dirigiu o longa metragem Rumo (l2022). Representou o Brasil no documentário, Kreativ durch die Krise para a ZDF TV ( Alemanha, 2020 ), curador do Festival Rastro (DF, 2020 e 2021), integrante do comitê de seleção Festival Mix Brasil (SP, 2020/22). Finalista Prêmio ABRA de roteiro (2021) e foi coordenador do Queer Festival for Palestine (2021).
Alfredo Manevy
Professor da UFSC e pesquisador em políticas culturais. Foi secretário executivo no MinC no governo Lula (2008-2010) e coordenou a implantação da Spcine, ligada à prefeitura de SP, e foi presidente da empresa (2014-2016).
Ivan Mello
Sócio fundador da Cup Filmes, produtora e distribuidora de filmes independentes, foi produtor executivo da Mostra de São Paulo e diretor artístico do Festival e do Polo Audiovisual de Paulínia. Produziu longas como “Bem Vindo a São Paulo” (2004), de Leon Cakoff e Renata de Almeida; “Corpo Elétrico” (2017), de Marcelo Caetano; “Alvorada”, de Anna Muylaert e Lo Politi; “Fronteira”, de Juliano R. Salgado; e “Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente”, de Cesar Cabral, entre outros.
João Andrade
Diretor Executivo na Coração da Selva. Tem duas passagens pela Spcine, sendo a última como Diretor de Desenvolvimento Econômico e Políticas Audiovisuais quando implementou políticas pioneiras em Diversidade e Inclusão para o setor audiovisual. Trabalha com Economia Criativa há 16 anos, tendo atuado no setor público, privado e terceiro setor. Atualmente cursa Mestrado Profissional em Economia na UFRGS em um programa específico em Economia Criativa com o Observatório do Itaú Cultural.
[notas]
(1) TransforME Mercado Cinema LGBT+ é um evento de mercado que busca reunir estudantes e profissionais do setor audiovisual brasileiro com o objetivo de capacitar e potencializar realizadores e projetos audiovisuais e cinematográficos no recorte do universo LGBTQIA+.
(2) EMBRAFILME, ou Empresa Brasileira de Filmes S.A. foi uma empresa de economia mista brasileira produtora e distribuidora de filmes cinematográficos. Foi criada em 1969 e extinta em 1990.
(3) Funarte, ou Fundação Nacional de Artes é uma fundação do governo brasileiro, ligada hoje ao Ministério da Cidadania (mas historicamente ligada ao Ministério da Cultura). Atua em todo o território nacional e é o órgão responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas de fomento às artes visuais, à música, à dança, ao teatro, ao circo e a outras expressões artísticas.
(4) Lei Rouanet, criada em 1991, é a lei federal de incentivo à cultura e permite que projetos culturais busquem captação.
(5) Polo cinematográfico de Paulínia, criado em 2007 pela secretaria de cultura da prefeitura de Paulínia, é um dos maiores investimentos feitos no audiovisual brasileiro. Possui quatro estúdios, escritórios temporários, motor-home (casa motorizada), trailer (camarim móvel), e uma escola completa e bem equipada de formação técnica na área, a Escola Magia do Cinema e um teatro para 1350 espectadores, onde aconteceu, de 2008 a 2014, o Festival Paulínia de Cinema. O polo já chegou a abrigar 4 produções de longas ao mesmo tempo, e hoje é usado principalmente por produções da Record.
(6) A Spcine é a empresa de cinema e audiovisual de São Paulo, iniciativa da Prefeitura de São Paulo com foco no desenvolvimento dos setores de cinema, TV, games e novas mídias.