Além (da) Imagem

Frame do filme "salut les cubans", de Agnès Varda

Viagem à Cuba

Desde minha chegada no Brasil falar sobre Cuba tem virado um exercício quase diário. Por momentos foi prazeroso, em outros foi desagradável e dolorido. Faz um tempo que optei por deixar Cuba fora do meu dia a dia o máximo possível, pois necessito espaço para viver o aqui e o agora. Logo recebo este convite para escrever sobre dois filmes que têm a Cuba no seu centro. Confesso que pensei em não aceitar, mas falar sobre a cineasta Sara Gómez e seu olhar sobre Cuba sempre me é instigante.

Sarita é como se fosse parte da minha família. Ela morreu, infelizmente, quase 10 anos antes de eu nascer, mas mesmo assim minha conexão com sua obra me faz senti-la  muito próxima, o que me faz estar confortável ao escrever sobre ela e seu filme. Mas desta vez o desafio é um pouco mais acima, pois devo revisitar uma outra cineasta, que embora admiro sua pessoa e obra, me é muito mais distante: Agnès Varda.

Alguns pontos de contato podem ter, e de fato têm estas duas mulheres, cineastas comprometidas com seu tempo. Mas o ponto de contato entre elas que me traz aqui, mais uma vez, é Cuba, e dois olhares sobre o país que estas cineastas nos legaram, Salut les Cubains (1963) de Agnès Varda e De cierta manera (1974) de Sara Gómez.

Still filme Salut les Cubains (1963), Agnès Varda
Still filme Salut les Cubains (1963), Agnès Varda

Como parte das transformações propostas pelo novo governo revolucionário em Cuba se promulgou uma série de leis que levaram a vias de fato estas mudanças. Uma das mais importantes é a primeira Lei de Reforma Agrária, aprovada em maio de 1959. No entanto, vou me deter na lei publicada no dia 24 de março de 1959 na Gaceta Oficial de Cuba (o que corresponderia ao Diário da União). Esta Lei, a 169, criava o Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos, pelas suas siglas, ICAIC. Vale ressaltar que esta foi uma das primeiras leis ditadas pelo novo governo e a primeira em matéria de cultura, exatamente 83 dias após o triunfo. Isto evidencia a grande importância concedida pela Revolução às artes e, em especial, ao cinema como ferramenta ideológica, o que pode ser conferido no próprio corpo da lei:

Por cuanto: El cine es un arte.

Por cuanto: El cine constituye por virtud de sus características un instrumento de opinión y formación de la conciencia individual y colectiva y puede contribuir a hacer más profundo y diáfano el espíritu revolucionario y a sostener el aliento creador. (RODRÍGUEZ, 2003. p 5)

Os jovens rebeldes(1) estavam cientes da importância de mostrar ao mundo o que era a Revolução o quanto antes e por seus próprios meios para conseguir o reconhecimento internacional. Experiências anteriores de cineastas como Dziga Vertov e Serguei Eisenstein, depois da Revolução Socialista de Outubro, ou a própria Leni Riefenstahl, durante o Terceiro Reich, são a prova da efetividade da sétima arte como ferramenta política e ideológica. Uma Revolução popular oferecia para o recém-criado ICAIC, uma ampla gama de acontecimentos para serem captados pelas lentes de seus cineastas.

Nesta primeira etapa do ICAIC, a maioria das produções foram filmes documentários e reportagens que mostravam a epopeia revolucionária. Esse primeiro público, que era o próprio povo sujeito das transformações que aconteciam e, ao mesmo tempo, protagonistas dos filmes, pouco estava preocupado pela feitura dos filmes, mas sim pelo que estes mostravam do processo.

O narrador, ensaísta e jornalista cubano Reynaldo González chama a atenção em seu livro “Cine cubano, esse ojo que nos ve” sobre a condição de acontecimento midiático do processo revolucionário em Cuba desde seus inícios. Ele observa que “diante das câmeras anunciavam e explicavam as novas leis, comunicavam as medidas significativas e aconteciam os debates” (GONZÁLEZ, 2009, p. 140, tradução minha).

Mas antes do próprio triunfo revolucionário, na Sierra Maestra, primeiro território livre de Cuba, zona onde se gestou a revolução, o Exército Rebelde contava com uma estação de rádio fundada pelo Comandante Che Guevara no ano 1958 a qual transmitia diariamente e replicava o sinal através de nove estações afiliadas e mais vinte plantas transmissoras em todo o país. O que corrobora o apontado por González.

A Revolução não só chamou a atenção de políticos e movimentos sociais a nível internacional, mas também de artistas e intelectuais nas mais diversas geografias. Cineastas de renome prestaram apoio na formação do pessoal do cinema em Cuba. Theodor Christensen (Ella), Chris Marker (¡Cuba si!), Jori Ivens (Cuba, pueblo armado), Mijail Kalatosov (Soy Cuba) e Agnès Varda (Salut les cubains) figuraram na lista destes colaboradores inspirados pela jovem revolução. Esta iniciativa não só possibilitou que estes importantes cineastas captassem em seus filmes esta nova realidade, como também que jovens cineastas em formação fossem seus assistentes e colaboradores, possibilitando que, sob a assessoria deles, estes cineastas cubanos criassem importantes obras.

Assim, no meio da convulsa realidade do momento, com a criação do ICAIC, o governo dava um importante passo no seu propósito de mostrar ao mundo o caráter transformador da Revolução.

“Uma saudação ao exagero cubano que financia este fresco delirante.”

De todos os cineastas convidados pelo ICAIC, Agnès Varda foi uma das que melhor se saiu ao olhar para Cuba e os cubanos, e ainda é possível perceber o deslumbramento ante uma realidade tão distante e “pitoresca” para ela.

Ainda, o ritmo e o corpo sinuoso da mulher cubana, principalmente da mulher negra, é algo que prende a Agnès, porém ela consegue sair deste lugar de pitoresco e mostrar uma mulher cubana diversa e ocupando outros espaços dentro da nova sociedade cubana. Consegue desconstruir símbolos tão marcantes dentro da revolução como a barba dos revolucionários.

Em uma entrevista para a revista Cine Cubana a própria Agnès se questiona:

Desde que estou aqui, me pergunto o que eu faria se fosse cubana. Tenho a impressão de que se poderia estar mais perto da realidade com menos explicações […]  Concordo que os realizadores cubanos tenham essa consciência política, mas acredito que não têm necessidade de expressá-la explicitamente. Há uma relação entre a consciência política e a maneira de expressá-la […] Acho que os cineastas cubanos têm um sentimento muito forte de responsabilidade e que esse mesmo sentimento os freia. A responsabilidade de uma consciência política existe também na maneira de se expressar. (IZNAGA, 1963. p 4-5)

Dois pontos chamam a atenção para mim nesta declaração da cineasta. O primeiro diz respeito à necessidade de explicitar o que é Cuba nesse momento, o que é a revolução, quem é Fidel e os outros comandantes, quais são as raízes étnicas e culturais que conformaram a sociedade cubana, sobretudo porque o público alvo deste filme não é o povo cubano e sim o resto do mundo. Curiosos e entusiastas da revolução e os jovens barbudos que “derrotaram” o império. Mas a cineasta não julga nem exalta o que vê. Ela toma o cuidado e a distância necessária para processar o que a afetou ao ponto de capturar com sua câmera o que depois ressignificou na montagem e na animação. É justamente a forma que faz de Salut les Cubains o filme que ele é. Um filme honesto e sem pretensões de definir Cuba e os cubanos.

A segunda questão é sobre o que ela chama de “sentimento de responsabilidade” que freia os cineastas cubanos na hora de expressar sua consciência política nos seus filmes, o que seria o clássico “não dar armas ao inimigo” que tanto escutamos e que ainda é possível escutar em alguns espaços. Esse sentimento e o rigoroso controle do governo levou a que grande parte do cinema desta época fosse um cinema centrado em mostrar só as conquistas da revolução e evitar qualquer tipo de crítica que pudesse servir como elemento de divisão entre o povo.

Agnès e os outros cineastas estrangeiros sentiram-se livres na hora de realizar seus filmes, alguns foram aprovados pela revolução, outros nem tanto. Mas o importante deste processo é que os novos cineastas cubanos dialogaram com outras formas de se fazer e muitos tentaram incorporar elementos deste aprendizado nos seus próprios filmes.

Still filme Salut les Cubains (1963), Agnès Varda
Still filme Salut les Cubains (1963), Agnès Varda

Em contraposição, em “De cierta manera”, filme da primeira cineasta a dirigir um longa-metragem de ficção, uma mulher negra, que teve um contato direto com a realidade que se propôs a filmar, existe um maior aprofundamento de como tem sido vivenciado este processo revolucionário pelo povo, especialmente pelo setor marginalizado da sociedade.

O filme apresenta-nos como o bairro Miraflores, construído em 1962 com o trabalho daqueles que iriam morar lá, é o resultado dos primeiros esforços que foram feitos, imediatamente após o triunfo da Revolução para erradicar os chamados bairros indigentes. Esses bairros abrigavam uma grande parte do antigo setor marginal de nossa população. No filme, os atores interagem com alguns personagens reais, em um enredo que combina documento e análise com ficção, e revela o conflito entre os velhos hábitos culturais do marginalismo que se esforçam para se perpetuar e uma nova concepção da vida(2).

O filme nos apresenta o lado conflituoso da Revolução para esses personagens. Questiona o processo desde a ótica de seus personagens e não desde a visão épica típica do momento. O filme nos traz dados estatísticos de quanto tem feito a Revolução pela erradicação destes espaços chamados marginais e na integração desta população com outras camadas da sociedade. Estes dados são contrastados, e de alguma forma ironizados, ao nos apresentar um grupo de personagens moradores reais destes espaços, os quais criticam e questionam a intromissão nas suas vidas por parte da Revolução.

Yolanda, uma das protagonistas do filme, é uma jovem de classe média que trabalha como professora no bairro Miraflores. Em várias cenas, a personagem deixa claro sua intolerância e incompreensão com algumas atitudes de seus alunos e os pais destes, demonstrando, assim, a sua dificuldade de se adaptar à nova tarefa encomendada pela Revolução. Isto contradiz a ideia generalizada que os problemas de adaptação foram sempre dos setores marginais da sociedade frente à Revolução. Isto fica evidenciado nas próprias palavras da cineasta ao comentar que:

From the outset, then, effectiveness of the revolution’s “strategy” of integration come into question as Yolanda, one of the fictional characters, gives testimony to the difficulty of teaching the children of the former slum population as enters a world that she thought, “no longer existed” (GÓMEZ 1974, APUD MORRIS, 2012, p. 177).

Desde o início, a eficácia da “estratégia” de integração da revolução entra em questão, já que Yolanda, um dos personagens fictícios, testemunha a dificuldade de ensinar os filhos da antiga população dos bairros marginais ao entrar em um mundo que pensou “não existisse mais” (GÓMEZ 1974, APUD MORRIS, 2012, p. 177).

Still filme De cierta manera (1974), Sara Gómez
Still filme De cierta manera (1974), Sara Gómez

No caso de Mario, o protagonista do filme, é um jovem “mulato” nascido no demolido bairro marginal “Las Yaguas” e que hoje está integrado à Revolução. Ele tem um romance com a professora Yolanda. Este relacionamento faz com que ambos, de estratos sociais diferentes, questionem-se mutuamente de suas visões de mundo. Para Mario, embora hoje morador do novo bairro, “Las Yaguas”, como espaço simbólico, é recorrente nas suas falas com Yolanda. Ele conta as histórias de criança, quando fugiam da escola para brincar na rua, também de quando quis se iniciar no jogo Abakuá(3)  e como o serviço militar obrigatório o salvou, pois ele “estava perdido”. Este personagem viria a ser um exemplo do que a Revolução pretendia com os moradores destes espaços, mas em cada fala nos traz questionamentos ao olhar preconceituoso que sobre eles pesam. Um exemplo disto se pode apreciar no momento em que, em um diálogo entre Mario e Yolanda, ele lhe diz que desde criança quis ser Ñáñigo, ou seja, pertencer à sociedade secreta Abakuá. Ela se assusta e ele responde com ironia:

MARIO

(irônico)

Sim, já sei o que vai dizer, que os Ñáñigos

no dia de Santa Bárbara comem crianças e tal. (4)

Seguidamente, começa um segmento didático em que é explicado o que é a sociedade secreta Abakuá. Portanto, o filme consegue encaixar na sua narrativa um discurso sobre o ser diverso, mas sem confrontar frontalmente o estabelecido. E, assim, podemos encontrar outros momentos do filme em que os dados científicos, estatísticos ou históricos são confrontados com uma realidade, às vezes, diferente da pretendida e anunciada no discurso oficial.

Still filme De cierta manera (1974), Sara Gómez
Still filme De cierta manera (1974), Sara Gómez

A utilização da foto-animação e de um narrador em off para trazer ao público o que é a sociedade Abakuá indiscutivelmente faz intersecção com o filme produzido por Varda. É interessante que a Agnès no seu filme também faz uma breve referência à sociedade Secreta Abakuá, porém para referir-se ao legado que o ritmo das danças deixou para o que hoje conhecemos como ritmos afro-cubanos.

Embora o assunto central da trama em De cierta manera não seja a questão racial, ele está presente em cada fotograma do filme. Se observamos detalhadamente a cinematografia cubana produzida pelo ICAIC, fica evidenciada a construção da narrativa fílmica desde uma abordagem de vitimização da população negra e também do uso da linguagem como elemento que reforça a ideia do marginalismo da população negra. Foi comum a utilização de espaços racializados, como o Solar(5), na construção cênica dos filmes. Espaços que foram indexados a elementos culturais e religiosos de matriz africana e que se utilizaram como marcas predeterminadas das personagens negras apresentadas nos filmes, o que contribuiu para a cristalização no imaginário coletivo da existência de um significante negro único.

Sara Gómez, na sua obra e especialmente em De cierta manera, busca romper com a ideia deste negro único, se contrapondo ao que era senso comum dentro da sociedade cubana, mesmo que, no ano de 1962, Fidel Castro decretou o fim do racismo e a discriminação racial em Cuba. Evidência da não compreensão social e estrutural destes fenômenos que até hoje pairam na sociedade cubana.

De cierta manera é um documento contundente da realidade de um setor da população cubana da época. Foi um alerta sobre as contradições que o poder se negou a resolver e sobre as quais se instaurou o silêncio.

Still filme Salut les Cubains (1963), Agnès Varda
Still filme Salut les Cubains (1963), Agnès Varda

O saber cinematográfico de Agnès Varda é inquestionável, porém é impossível falar de Salut les Cubains sem falar de Sarita Gómez. A cineasta cubana não só dança para a câmera da Agnès, mas também apresentou para ela uma realidade cubana que ia além do que comumente era mostrado.

Assim como, com certeza, o trabalho com a foto-animação da Varda em Salut les Cubains influenciou a Sara e outros cineastas cubanos, sobretudo a forma como representar a Cuba e os cubanos em uma época onde tudo raiava a solenidade hierática da Revolução, ou, no outro, extremo a festa e alegria desmesurada.

 

 

[notas]

(1) O exército que levou a cabo a Revolução cubana foi conhecido como Exército Rebelde, daí que foi comum serem identificados como jovens rebeldes devido a sua juventude.

(2) Extraído do catálogo do filme existente na cinemateca de Cuba. (Documento sem data e local de publicação)

(3) A Sociedad Secreta Abakuá, ou Ñañiguismo, é a forma em que se identifica a uma sociedade secreta masculina, a única de seu tipo existente no continente americano. Ñáñigo é o nome que recebem seus membros. Para iniciar-se na sociedade secreta Abakuá é preciso cumprir uma série de requisitos como: ser homem, ser bom filho e ser bom amigo.

(4) Tomado do filme De cierta manera.

(5) O Solar é um conjunto habitacional o qual tem uma entrada comum para todos e um grande pátio central, em geral, como espaço coletivo onde se encontravam tanques para lavar roupas, varais e muitas vezes aconteciam as festas. Estes agrupamentos se deram como resultado da segregação laboral e habitacional desde o período colonial e que se estendeu até 1959.

Yasser Socarrás

Produtor, roteirista e diretor na Filmes de Apartamento, onde é sócio fundador. Escreveu, produziu e dirigiu audiovisuais em Cuba, Bolívia e Brasil. Recebeu o Prêmio Diáspora com o projeto “Memórias do Olvido” 2021 e o Prêmio Catarinense de Cinema, 2021, com o curta-metragem O último é mulher do Padre e com o longa-metragem “Os quatro dos passos” em 2023 na categoria de produção de longa BO.

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