1. O racismo em Santa Catarina e as artes negras
Em 1952, Ralph Ellison, escritor norte-americano, publica “O Homem Invisível”, marco do afrofuturismo na literatura, narrando a trajetória de um homem negro pelos estados sulistas da América do Norte nos primeiros anos do século XX, lidando com a invisibilização de seu corpo e de sua existência pelos brancos racistas e até mesmo os abolicionistas.
Começamos esse texto pela obra prima de Ellison por dois motivos: discutir sobre o artivismo do povo negro catarinense, pensando as contradições do sul do Brasil, e ao mesmo tempo revelar seu histórico apagamento sociocultural para, num recorte específico, mostrar como as artes negras de Santa Catarina são atravessadas pelo racismo estrutural e institucional. Daremos ênfase em nossa área de atuação, o cinema e o audiovisual. Contudo, nosso objetivo central é mostrar como os grupos e coletivos negros de arte presentes em nossa região são elos de resistência contra essa dinâmica opressora e como ações pontuais e estratégicas criadas por eles se tornam mecanismos de enfrentamento direto à lógica de invisibilização e apagamento característicos da região sul. Ao final, traremos dois estudos de caso sobre como a educação e a cultura são instrumentos irrefutáveis dessa mudança que buscamos, usando os exemplos da disciplina universitária autogestionada de Cinema Negro da UFSC e do Lab Aquilombasul – Laboratório de Formatação de Projetos Audiovisuais Negros.
Assim como o personagem do livro de Ellison, nossas peles pretas são invisíveis aos olhos brancos quando buscamos construir espaços de formação artística antirracistas em nosso estado. Há os que não veem e os que fingem ver, que são aqueles que, abraçando as tais pautas identitárias, nos inserem em espaços historicamente embranquecidos para cumprir com a necessidade de cotas abonando suas consciências ou para eximir a culpa cristã que os persegue.
Segundo uma pesquisa da professora Jeruse Romão sobre os Clubes Negros em Santa Catarina, as populações negras só passaram a frequentar espaços brancos por volta dos anos 1990. Sendo o estado com a menor presença de pessoas pretas até hoje, tal contexto parece delimitar um regime de apartheid que se manifesta ainda hoje nas regiões periféricas das grandes cidades, especialmente Florianópolis. Na pesquisa, Jeruse nos mostra que para as populações de origem africana poderem ter espaços culturais de afeto e pertencimento coletivo precisaram criar esses grupos chamados de clubes negros para se aquilombar e resistir. Estes eram espaços que, além de proporcionar união, lazer, cultura e educação, também eram centros de preservação das memórias e das identidades coletivas do povo negro catarinense. Trazemos esse exemplo para fazer um paralelo de como os coletivos negros, em especial os relacionados às artes em atuação hoje, são parte desse legado, preservando a lógica da necessidade de ajuntamento e afeto do povo negro catarinense.
E no cinema e audiovisual de Santa Catarina, como as coisas estão? Bem, vamos voltar um pouco no tempo e viajar no espaço, para a cidade de São Paulo, em agosto de 2000, período em que se realizava o 11º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo. Neste festival é lançado o manifesto Gênese do Cinema Negro Brasileiro (chamado também de Dogma Feijoada), escrito pelo cineasta Jeferson De, que propunha um debate crítico sobre a representação do negro no cinema brasileiro, um tema que não fora explorado nem discutido com profundidade na programação do evento em nenhuma das suas 10 edições anteriores. Desde lá, cineastas negros de todas as regiões do Brasil vêm lutando pra consolidar suas produções afrocentradas diante da hegemonia da branquitude. No entanto, somente em 2019, o Movimento Negro Periférico, o Projeto É Da Nossa Cor e o Coletivo Pele, em parceria com o programa Cinemática Temas Transbordantes, conseguiram criar o 1º Festival Cinema Negro de Santa Catarina, ou seja, 18 anos depois. Este é um ótimo exemplo de como as coisas acontecem no sul do Brasil quando o assunto são as artes negras.
2. Os coletivos negros de arte e sua atuação na formação antirracista
Partimos da pergunta: Por que é importante em uma cidade como Florianópolis existirem coletivos negros de arte?
Nos espaços de formação, construção e trabalho que envolvem arte e cultura em nossa cidade, percebe-se uma considerável ausência das pessoas pretas. O que é estranho, porque existem muitas pessoas pretas em Florianópolis fazendo arte e cultura. Essa ausência se dá pelo fato de muitos desses espaços dificultarem nossas inserções e permanências, pois foram construídos e são atualizados para nos sentirmos deslocados. Seja não encontrando outros de nós em companhias e/ou referências, ou em propostas de projetos que envolvem nossos setores e que não são condizentes com a realidade de nossas trajetórias de vida, sempre dificultando ao máximo nossa ocupação em lugares de poder.
Os coletivos de arte negra em Florianópolis são como fortalezas para que os artistas e grupos consigam continuar lutando na disputa por oportunidades que são atravessadas pelo racismo estrutural institucionalizado e do mercado de trabalho que ainda insiste em continuar a reprodução desta lógica discriminatória. São nos coletivos que conseguimos atravessar esse projeto de invisibilização, ao nos encontrarmos e ouvirmos uns aos outros, fazendo o resgate dos nossos e das nossas que sofreram o apagamento. Construindo, a partir daí, perspectivas de espaços que sejam coerentes com as nossas lutas e que nos projetam para qualquer lugar; inclusive os lugares de poder dentro da arte e cultura em geral.
O Coletivo Olho Negro está em ação há pouco mais de um ano. No entanto, existem outros coletivos negros de arte em Florianópolis, os quais são considerados grandes referências para a nossa construção e ações desenvolvidas. Convidamos para colaborar conosco três espaços importantes para a (re) existência da arte negra na cidade. A Setorial de Cultura Negra em Florianópolis, o Coletivo Ação Zumbi e o Coletivo Nega. Por meio de seus representantes, produzimos transcrições de áudios, onde os envolvidos relatam sobre a troca de reconhecimento e um pouco de suas ações e estratégias, em específico, pensando no setor audiovisual.
[Setorial de Cultura Negra de Florianópolis]
Representantes: Taty Americo e Nana Martins.
“Meu nome é Taty Americo, estou conselheira da Setorial de Cultura Negra de Florianópolis. Penso que trabalhar a representatividade negra no Audiovisual é um desafio cada vez mais necessário. Os espaços de formação antirracista e os coletivos que trabalham com a temática afro, não são só espaços de libertação e enfrentamento. O Audiovisual, por exemplo, é muito importante porque ele trabalha e mostra a história por outra ótica. Reforçando, valorizando e dando visibilidade para cultura afro e profissionais negros e negras. Dessa forma, combatendo preconceito e contribuindo para a reconstrução de uma sociedade marcada pela marginalização da população negra”.
“Oi, eu sou Nana Martins e faço parte da Setorial de Cultura Negra de Florianópolis, junto com a Taty Americo. Na Setorial a gente atua junto ao conselho sempre alertando sobre o recorte racial. No âmbito de editais e na divulgação de trabalho desses artistas. O recorte racial dentro do Audiovisual se faz necessário para trazer novas temáticas, subjetividades e histórias. Atuando como uma forma de combater o racismo na mídia, que inviabiliza tanto atores como produtores dessa manifestação artística”.
[Coletivo Ação Zumbi]
Representante: Lelette Coutto
“Olá, pessoal. Bom, eu vou responder aqui, em cima das perguntas que o Júnior me fez. Em relação às ações e estratégias que o coletivo atua aqui em Florianópolis, é sempre com o intuito de formar o nosso grupo étnico. Onde nós possibilitamos, além dos vídeos para serem assistidos e debatidos, nós também temos a preocupação da formação do nosso próprio coletivo. Das pessoas que fazem parte do nosso trabalho. Porque o coletivo Ação Zumbi tem por missão estimular, sensibilizar e trazer a população negra pra esse lugar, pra esse cenário de criação, pra esse espaço de arte, né. Que se possa expressar a nossa forma de viver, de pensar, diante de tudo isso que acontece. Então, o coletivo, que é um coletivo com posturas de ampliar as linguagens e ampliar o alcance, também acolhe pessoas que querem produzir vídeos, que não são todos atores e atrizes, né, mas são pessoas que querem se inserir nesse meio de alguma forma. Então, os vídeos são preparados de forma amadora, mas com o intuito de incluir cada vez mais o maior número de pessoas. Não é um coletivo fechado. A gente sempre tem essa intenção de ampliar, sempre. E a partir do momento em que as pessoas vão participando, elas vão se encaixando dentro daquilo que elas têm desejo de participar. E as pessoas do meio Audiovisual, geralmente, todos entram com essa vontade de estar também contribuindo com a sua expressão. E é uma forma, né, que a gente entende de incluir essa população, essas pessoas. E a partir do momento da inclusão, a gente também forma. Possibilita, também, a formação de um quadro de pessoas sensibilizadas para essa questão. E que se quiserem e tiverem desejo de continuar, seguirão numa carreira e nas suas escolhas profissionais. Então, nós temos muito prazer e muita sorte de estarmos atraindo pessoas muito talentosas. Isso nos dá um grande reforço, né, e demonstra que estamos no caminho certo. Estamos galgando essa trajetória de forma que, daqui um pouco, e até já, percebemos grandes talentos aí, aparecendo. Essa é a missão do coletivo, onde pretendemos através do Audiovisual, possibilitar essa inclusão do povo negro catarinense. Não só para os que assistem, mas também para os que participam”.
[Coletivo Nega]
Representante: Thuanny Paes
“Olá, me chamo Thuanny. Sou artista multidisciplinar, arte-educadora e produtora. Desenvolvi o “Mulheres Negras Resistem” durante quatro anos e o “AFROARTE SC” durante um ano. Como sempre me identifiquei, também, com o audiovisual, achei muito importante no momento desses projetos que eles tivessem registros visuais. O que normalmente não acontece com os projetos de teatro, e muito menos com os projetos de arte-educação. Ficando apenas na experiência efêmera, né, que depois desaparece da memória e com o tempo, acaba se apagando. E a gente, pessoas negras, corpos pretos, nós temos muita carência de memória, principalmente visual, sobre os nossos trabalhos. Então, pra mim, sempre foi muito importante esses registros, nesse sentido, né. Ainda mais que foram trabalhos que a gente desenvolveu de teatro, então, a gente acabou, a partir dos dois trabalhos, desenvolvendo no “AFROARTE SC” uma série, que mostra um pouco do nosso trabalho nas escolas. E no “Mulheres Negras Resistem” tem um doc, que ainda, possivelmente, vai ser relançado e reeditado, mas que também mostra um pouco desse trabalho diário de arte e educação”.
É importante compreender que as ações de enfrentamento ao racismo estrutural e as estratégias de formação antiracista necessitam fazer parte de todos os espaços artístico-culturais em nossa cidade, e não somente nos coletivos negros de arte. A gestão cultural de uma cidade atravessa muitos processos para ser executada, através de órgãos institucionais e setoriais organizadas que constroem e desenvolvem planos de ações. A existência e organização dos coletivos e setoriais negros de arte são, para além de tudo que já foi compartilhado, de suma importância para se estar presente nesses espaços onde são debatidos e construídos estratégias de investimento, divisão de verbas, leis de incentivo, criação de editais de cultura, entre outros. A mudança precisa ser realizada de dentro para fora. Queremos fazer parte da construção estrutural da arte e cultura de Florianópolis no geral, e não ocupar somente os espaços de debate ou conseguir furar a bolha através de uma pequena porcentagem nos mecanismos indutores. Muito menos estar em um ponto de perspectiva que nos considere como um recorte da história da arte e cultura do nosso país, pois como bem colocou Januário Garcia “Existe uma história do povo negro sem o Brasil; mas não existe uma historia do Brasil sem o povo negro”.
3. Disciplina de cinema negro na UFSC e o Lab AquilombaSul
“Quando Noun Bouzid fala que o cinema é mais colonizador que o colonialismo, eu compreendo. A batalha de imagens é mais feroz, a mais implacável e, o que é pior, é contínua.”
Ngugi Wa Thiong’o (1)
Cinquenta e oito anos é o tempo que se tem entre a fundação da primeira escola de cinema formal do Brasil até a existência de uma disciplina de Cinema Negro dentro da grade curricular de um curso de graduação (2). Mais de meio século foi preciso para que se rompesse essa limitação dentro das discussões que circundam a formação em Cinema e Audiovisual no Brasil. Mais de meio século. E, em um dos estados mais racistas do país, acontece uma quebra: é aqui, em Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina, dentro do Curso de Cinema (3), que, quinze anos depois de sua fundação, é criada a disciplina de Cinema Negro dentro da grade de ensino.
Em meados de 2013, quando parte do nosso coletivo acessava a Universidade, falar de Zózimo Bulbul (4) nas aulas de cinema brasileiro, era trocar referências com um ou mais dois colegas. Falar sobre as movimentações do Teatro Experimental do Negro (TEN) (5) ou das problemáticas do apagamento de Adélia Sampaio (6) como parte do Cinema Novo, era uma discussão distante da nossa rotina de estudos. Afinal, a quem interessava falar de cinema negro? A quem interessava quebrar as correntes do imaginário racista da representação do negro do cinema? A quem interessava saber se haviam diretoras e diretores negros contando histórias, dirigindo cenas, pensando a imagem?
De um lado, alunos que nunca puderam se ver possíveis, tanto dentro da Instituição, quanto dentro das narrativas propostas pelos professores. De outro, um sistema de produção de conhecimento que funciona muito bem em nome de uma classe dominante branca, articulado para que a gente não se encontre, nem nos corredores e tampouco nos parágrafos dos textos.
“A construção de um cinema negro, ou que encene representações das relações raciais, não é monopólio de um grupo étnico” (CARVALHO, 2005). Estudá-lo e fazê-lo conhecido tampouco. Mas, como estamos falando de instituições e suas burocracias, estamos falando de travar uma luta com o racismo que também impera nas instituições, que são nossa chave e também nossa corrente em uma série de espaços quando falamos de corpos negros tentando reparar as perdas históricas da sua construção intelectual.
Em 2019, havia um ajuntamento de alunos que precisavam pensar em como, segundo bell hooks, “abrir espaços para imagens transgressoras” (HOOKS, 2019). Já não era mais suficiente entender o cinema através de uma lente que naturalizava um lugar onde os corpos negros são estereotipados, violentados, e entram pela portas dos fundos da construção imagética e teórica no cinema; reconhecida pelo olhar do outro e sendo pelo outro representado. Dessa inquietação e tomada de consciência foi que iniciamos o movimento para que a história do cinema negro brasileiro pudesse ser conhecida dentro dos estudos do curso de cinema da UFSC.
A disciplina teve início em 2019, com o encontro dos estudantes Sérgio Machado, Júnior Alves, Gabriel Nunes e Cameron Venture, que estabeleceram contatos com intelectuais e cineastas de vários estados do Brasil para compartilhar seus estudos e pesquisas durante as aulas semanais.O corpo docente conta com 11 professores oficiais, nenhum deles é negra(o). Para lidarem com questões burocráticas e tornarem oficial como disciplina, o coletivo estabeleceu então, um contato com a professora Aglair Bernardo (7), interessada por debates sobre cinema com recortes raciais, que assina e assume a responsabilidade pela disciplina, mas deixa ao coletivo a autoria e construção da ementa e referenciais teóricos.
Com 90% de intelectuais negros brasileiros, o primeiro módulo teve como objetivo principal discutir os aspectos históricos do cinema negro no Brasil enfatizando a análise cultural dos filmes, envolvendo construções de raça, gênero, classe.Desse modo, foi dividida em tópicos, pensando um panorama que faz o cinema negro ser o que é no Brasil, partindo da reflexão de estética da resistência, problemáticas de estereótipos e representações negras no cinema e na mídia, perspectivas de gênero e diversidade sexual dentro desse cinema, cenário mercadológico e perspectivas de fomento.
Junto à construção dessas reflexões, além de textos para embasar os debates, a disciplina contou com um encontro sobre “Políticas públicas”, com a presença da cineasta e atual presidente da Spcine, Viviane Araújo; um encontro sobre “Cinema e diversidade sexual e de gênero”, com a presença do artista e professor Luck Palhano, e um encontro sobre “Dogma Feijoada (8)” e “Manifesto de Recife (9)”, com a presença do cineasta e pesquisador Adriano Monteiro. Esse último encontro teve como fruto reflexivo a construção de um manifesto utilizando-se do “Dogma Feijoada” e do “Manifesto do Recife” como referência, tendo como ideia ampliar a discussão e construir novos pontos em um trabalho conceitual, de produção crítica e coletiva.
O exercício foi chamado de Manifesto Entrevero e trazia os seguintes pontos:
I – O filme precisa fazer um resgate da cultura negra, seja em seu enredo, em sua pesquisa ou em sua produção.
II – Pelo menos metade da equipe ser composta de realizadores negros, abrangendo as diversidades dentro do ser negro.
III- Ampliar a participação e protagonismo de mulheres e pessoas LGBTQI+ negras nas produções audiovisuais.
IV- Exigir políticas públicas que fortaleçam a produção do cinema negro no Brasil, como a criação de disciplinas sobre cinema negro nas escolas audiovisuais.
V – Por filmes que se comprometam com a memória, e portanto, despertem o sentimento de ancestralidade, pertencimento e unidade.
VI- Pela defesa e ampliação de políticas públicas que invistam em narrativas de culturas afro-brasileiras, possibilitando sua exibição para o grande público, a fim de construir uma nova lógica de produção estética que vise a transformação radical das relações sociais.
VII – Buscará contribuir com o escurecimento das produções locais. Buscará promover mídias que desloquem o olhar colonizado das produções encontradas no/sobre o Sul do Brasil, incluindo as histórias outras que, por racismo, são constantemente apagadas.
Mesmo não sendo obrigatória, a disciplina de Cinema Negro reverberou de tal modo que um segundo módulo se projetou para 2021, ampliando ainda mais seus tópicos de debate e sua bibliografia, traçando uma linha do tempo desde o cinema mudo até os debates contemporâneos de afrofuturismo, cinema e vídeo e decolonialidade. Os alunos produziram filmes-ensaios refletindo os referenciais teóricos acumulados durante o semestre.
Foram 14 textos debatidos, 7 curta-metragem vistos em aula, uma filmografia de mais 50 produções audiovisuais sugeridas e a presença ilustre, em uma das aulas, da cineasta e pesquisadora Rosa Miranda, que refletiu “Cinema negro e educação” com os alunos.
Quando trazemos a importância de uma disciplina que se discuta o Cinema Negro, não estamos apenas falando da produção de conhecimento acerca do tema, estamos também falando sobre vidas, estamos falando sobre permanência de alunos negros dentro da Universidade Pública, estamos indo além: estamos quebrando a cruel “máscara do silenciamento (10)”, indo contra a lógica do Trauma Colonial (11).
No momento em que há uma quebra com a ordem colonial onde as bibliografias, os teóricos, os técnicos, as referências, as narrativas, os professores e os alunos são brancos, há uma possibilidade de permanência de estudantes negros, há o grito de um discurso onde podemos nos ver possíveis.
A filha da doméstica que não conseguiu traduzir o texto que o professor de História de Cinema só disponibilizou em inglês descobre que há 37 anos havia uma mulher, também filha de doméstica, também negra, fazendo um filme (12) revolucionário para época, e entende que não precisa ser filha de doutor nem saber ler inglês pra fazer filme. Tem um túnel onde dá pra seguir. Firmamos então nossa existência, saudando todos que vieram antes e mostrando para os que estão chegando agora, que existimos e podemos vislumbrar um futuro. Estamos nos encontrando nos corredores e nas bibliografias; e esse encontro é também parte da História do Cinema Negro. Estamos fazendo História.
3.1 Lab AquilombaSul – Formatação de projetos audiovisuais negros
No período em que se encerrava a primeira disciplina de cinema negro, se instala uma pandemia mundial. O distanciamento social, o contexto político e uma crise econômica crescente, fragilizam nossas estabilidades e permanências nos ambientes acadêmicos. Os desmontes culturais destroem o futuro e o sonho de alavancar projetos audiovisuais e de qualquer natureza artística. Um desânimo e um medo oriundo do desconhecido se instaura. Muitos voltaram para as casas de seus pais, o sonho de quem finalmente tinha chegado na universidade há pouco parecia acabar. Quem acabou de se formar, se já tinha dificuldades em vislumbrar um futuro no mundo do trabalho, passa a se preocupar. Pensar alternativas fica mais difícil.
Os estudantes que se movimentaram, a princípio, no primeiro módulo da disciplina de cinema negro, permaneceram em contato durante os tempos de afastamento. Se mantinham informados e fortalecidos através de um grupo nas redes sociais para se apoiar, e manter projetos vivos. É nesse momento que se junta Beatriz Silva e Cleo Rosa a Júnior Alves, Sérgio Machado, Gabriel Nunes e Cameron Venture. No desejo de manter uma rede que preservasse viva a construção histórica de um olhar negro no audiovisual de Florianópolis e atravessar um momento pandêmico com um espaço cercado de afeto, cura e aprendizado.
Desse encontro nasce o Coletivo Olho Negro, que desde seu primeiro encontro é nomeado assim, instantaneamente: COLETIVO. Uma potência que gerou debates e deu origem a muitos projetos, dentre eles o Lab AquilombaSul – Laboratório de Formatação de projetos audiovisuais negros.
Já vínhamos observando o cenário audiovisual do estado de Santa Catarina e estava incomodando, a cada um de nós, encontrar pouco ou nenhum profissional negro liderando equipes dentro de set’s, nas produtoras e nas listas de projetos contemplados nos editais. Se não estávamos vendo, seria nosso dever mostrar, colocar em debate Santa Catarina como um estado de marginalização do povo preto e reafirmar a existência de negras e negros produzindo audiovisual no estado. Aquilombar se fazia necessário, afinal.
Percebemos que a melhor forma de ampliar nossa rede preta de realizadores seria, primeiro, mapeando os profissionais (13) e, segundo, trabalhando para inverter a lógica que nos coloca no fim da cadeia de financiamento no meio audiovisual.
Nosso trabalho se volta, então, para propor um espaço com foco na estruturação de carreiras de pessoas negras em posições de liderança criativa, intelectual e econômica. O projeto teve como principal objetivo oferecer consultoria, palestras e oficinas que possibilitassem aos projetos de autoria negra de Florianópolis e Mesorregião ganhar estrutura para competirem por recursos de produção. Os debates se deram em torno dos eixos de produção, políticas públicas e distribuição para (re)pensar formatos e estratégias de inserção de produções audiovisuais no mercado, as estruturas orçamentárias exigidas em editais públicos e privados, ampliar o conhecimento sobre Leis de fomento, mecanismos indutores e ações afirmativas em editais.
Enquanto pré-produzíamos o laboratório, nossa rede se ampliava com a chegada dos ministrantes. Com o aceite para ministrar palestras e oficinas, construímos nossa programação com Camila de Moraes (14), Talita Arruda (15), Erica de Freitas (16), Renato Cândido (17) e Yasser Socorrás (18), todos profissionais referências, potências aliadas ao olhar transformador de construir redes negras em todos os espaços do audiovisual.
Contemplados pelo Edital Municipal Armando Carreirão (19), conseguimos remunerar nossa equipe, coisa tão essencial para a permanência no mercado audiovisual, sobretudo para pessoas negras, sobretudo em uma pandemia.
Foram meses de dedicação para que o laboratório alcançasse as pessoas, atravessasse as dificuldades do trabalho de produção remota e ganhasse vida.
Em julho de 2021, nosso projeto finalmente ganha o mundo, as telas de conexão no Google Meet, os grupos de interação pelo Whatsapp, a biblioteca do Google Classroom e o encontro quente com 9 projetos selecionados, dentre eles curta-metragens de ficção, animação, série e documentários. Foram três semanas de imersão, troca, estudos e desenvolvimento dos projetos, contando com uma roda de pitching na última semana.
Realizar o Lab AquilombaSul proporcionou uma rede ampliada de realizadores negros da mesorregião de Florianópolis e o entendimento de que não estamos sós, que somos múltiplos aqui, que ninguém consegue nos parar quando nos Aquilombamos, quando temos portas e janelas de possibilidades abertas para alavancar nosso conhecimento, quando temos espaço de acolhimento que faça nossa imaginação voar. É possível construir novos olhares e realizar nossas ideias e narrativas por nós mesmos, sem precisar de intermediários. Por isso, é extremamente fundamental que as políticas públicas atendam às nossas demandas, para sairmos da inexistência e, finalmente, sermos considerados nos dados do setor cinematográfico, reconhecidos pelo poder público e pela sociedade como criadores e profissionais do cinema.
[notas]
(1) Ngugi Wa Thiong’o é escritor queniano e está mencionando Noun Bouzid que é cineasta tunisiano. (apud. TORRES, 2017).
(2) Até a escrita desse artigo, não identificamos registro de disciplina de cinema negro como oficial em nenhum curso de Graduação nas escola de cinema do Brasil.
(3) História do Curso de Cinema – Disponível em: https://cinema.ufsc.br/historia
(4) Jorge da Silva, considerado precurso do Cinema Negro Brasileiro. Ator, cineasta, produtor, roteirista e fundador do Centro Afro Carioca de Cinema, espaço de valorização da produção cinematográfica brasileira, africana e caribenha.
(5) Idealizado por Abdias Nascimento nos anos 40 com a proposta de valorização social do negro e da cultura afro-brasileira por meio da educação e arte.
(6) Primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem de ficção no Brasil.
(7) Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (1982), mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (1994) e doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007). Atualmente é Professora Associada IV, do Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de Comunicação, Jornalismo, Cinema, Antropologia, Teoria Literária, Arte e Comunicação.
(8) O Dogma Feijoada: Gênese do Cinema Negro Brasileiro é um manifesto feito por produtores, documentaristas e curtametragistas negros de São Paulo no qual preconizava sete exigências (ou mandamentos) fundamentais para a produção de um cinema negro.
(9) Documento que conclamava o fim da marginalização dos atores, atrizes, apresentadores e jornalistas negros na indústria audiovisual. Foi assinado durante a 5ª edição do Festival de Cinema do Recife, em 2001, por, entre outros, Joel Zito Araújo, Maria Ceiça, Milton Gonçalves, Norton Nascimento, Ruth de Souza e Zózimo Bulbul.
(10) Esta máscara era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca, que ficava entre a língua e o maxilar, usavam-se duas cordas que passavam por detrás da cabeça para poder fixar a máscara. Essa máscara era utilizada pelos senhores brancos nos homens negros escravizados e tinha como principal função impor numa cajadada só a mudez e o medo. A máscara atuava como estratégia muito eficiente de conquista e dominação através do silenciamento: “Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?” (KILOMBA, 2019, p. 33).
(11) A evocação de memórias coletivas coloniais através do trauma. Também, de forma resumida, a condição imposta de sermos artefatos do homem branco. (KILOMBA, 2019, p. 40).
(12) Amor Maldito (1984), Direção de Adélia Sampaio.
(13) Em maio deste ano, o coletivo iniciou uma pesquisa que consiste no mapeamento para unir informações sobre a trajetória e presença de trabalhadoras(es) e estudantes negres atuantes no audiovisual catarinense.
(14) Camila de Moraes é jornalista. Diretora do documentário de longa-metragem “O Caso do Homem Errado” que aborda a questão do genocídio da juventude negra no Brasil. A cineasta se tornou a segunda mulher negra a entrar em circuito comercial com um longa-metragem após 34 anos de silenciamento no Brasil.
(15) Atua nas áreas de curadoria, distribuição, programação e exibição de filmes, com experiência nas empresas Vitrine Filmes, Canal Curta!, Porta Curtas e Synapse Brasil. Foi tutora no Locarno Industry Academy e selecionada no Berlinale Talents.
(16) Erica de Freita é produtora executiva, fundadora da Encantamento Filmes, empresa que busca produzir conteúdos audiovisuaisde realização, roteiro e/ou protagonismo feminino e idealizadora do projeto Visionárias, uma iniciativa comprometida com o debate e a formação antirracista no campo dos negócios audiovisuais, sob o ponto de vista das mulheres.
(17) Cineasta, mestre em Ciências da Comunicação.Desde 2012, é sócio proprietário da Produtora Audiovisual Dandara Produções Culturais e Audiovisuais.
(18) Realizador audiovisual, professor e pesquisador. Escreveu, produziu e dirigiu curtas e longas-metragens.Atualmente desempenha como Coordenador de Exibição na Plural Filmes e nas funções de Produtor e Diretor dentro da Filmes de Apartamento, onde é Sócio Fundador.
(19) Principal edital municipal de instrumentos de apoio à produção audiovisual em Florianópolis-SC.
[bibliografia]
CARVALHO, Noel dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. In: Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. 2018. Ensaio Dogma Feijoada – A Invenção do Cinema Negro Brasileiro. Pág. 227 à 240.
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie
Borges. São Paulo: Elefante, 2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo cotidiano. Pág. 33 à 40.
MONTEIRO, Adriano Monteiro. Os territórios simbólicos do Cinema Negro: Racialidade e relações de poder no campo audiovisual brasileiro, 2017.
SANTOS, Júlio César dos & BERARDO, Rosa Maria. A quem interessa um “cinema negro”? Artigo
TORRES, Célia. Cinema Negro. In: Revista Digital – XXI Encontro Socine, 2017