Cada pessoa possui a sua própria trajetória, e cada uma é diferente e única. Neste ensaio, irei contar um pouco da minha experiência e dos meus trabalhos como diretora de arte, começando em Rio Claro, no interior de SP, com curtas de baixíssimos orçamentos, até chegar no longa-metragem. Como foi o processo criativo de alguns, maiores dificuldades e diferenças entre os curtas e o longa.
Sem nenhum conhecimento sobre direção de arte do audiovisual, em 2014, enquanto trabalhava como produtora de moda na cidade do Rio de Janeiro, fui convidada pelo diretor de cinema João Paulo Miranda Maria para dirigir a arte do seu curta-metragem Command Action, que seria filmado em Rio Claro, SP, cidade em que nasci e atualmente moro.
Devido a minha formação e área de atuação, trabalhei neste curta seguindo o processo de uma produção de moda, e descobri na prática as semelhanças de ambas profissões, afinal, não conhecia nenhum diretor de arte de audiovisual para quem pudesse pedir ajuda.
Com carta branca para montar a equipe de arte, na hora pensei em características que considerava importantes para as pessoas que fizessem parte de uma equipe que me completasse, e por se tratar de um curta filmado todo em uma feira livre, onde eu deveria mexer e mudar várias coisas nas barracas dos feirantes, chamei a minha mãe, Eliana Palmero Butolo, que naquela época trabalhava como artista plástica e professora de artes há quase 40 anos, pois se ela era capaz de organizar salas repletas de pré-adolescentes, então os trabalhadores da feira seriam tranquilos!
Criei painéis conceituais ou, como chamamos na direção de arte do audiovisual, mood boards, paleta de cores, pensei em toda concepção visual do projeto. Porém, como boa parte da equipe também não era profissional, estávamos todos começando, as aprovações de props¹ se davam em conversas informais sem nem ao menos sabermos o que eram props, nem sobre a existência desse termo.
Por se tratar de um projeto de baixo orçamento, onde inicialmente o único orçamento era para remunerar os profissionais que estavam cedendo seus trabalhos em busca de um mesmo sonho, foi feita uma rifa, com o apoio de alguns comerciantes da cidade, para conseguirmos um pequeno valor (cerca de R$600,00) para comprar lanche para equipe e uma ou outra coisa que fosse necessária para a produção.
Como é muito comum acontecer com diretores de arte de curtas de baixo orçamento, além de assumir todas as funções do departamento, também assumimos o figurino, que não faz parte do departamento de arte (o que, na época, eu também não sabia, aliás, não sabia nem que exista um departamento de arte!).
O processo criativo começou através de visitas semanais à Feira Livre do Cervezão, onde, além de poder observar as cores, texturas e formas daquele local, observei as vestimentas e conversei tanto com os trabalhadores locais como com os visitantes. O olfato também foi um fator muito importante, por se tratar de algo muito característico que mistura o cheiro dos pastéis fritos, animais, e todos os outros alimentos. Como ainda não é possível transmitir essa sensação através do cinema, tentei traduzi-la através das cores e texturas.
Além dos feirantes e pessoas que frequentavam a feira, havia vários figurantes e, consequentemente, vários figurinos, os quais organizei, enquanto Diretora de Arte/Figurinista que era, em saquinhos de supermercado, ou seja, cada figurante tinha o seu saquinho e cada saquinho continha um papel colado que descrevia todos os objetos e peças de roupas que continha. Era necessária essa organização, pois o curta foi filmado em diferentes domingos, já que a feira acontecia apenas naqueles dias.
Command Action estreou na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2015, e então eu tive a certeza do que eu queria como profissão, porém, havia um longo caminho de aprendizado pela frente.
Logo em seguida, trabalhei como diretora de artes do curta-metragem Quem Chegar Por Último, do diretor Rogério Borges, que ganhou o Prêmio Especial do Júri no 16º Festival Curta Goiânia, o que me motivou a estudar por conta própria sobre direção de arte. A cada artigo que encontrava na internet meu mundo começava a se expandir.
Ao filmar, em 2015, o curta A Moça que Dançou com o Diabo, que estreou no ano seguinte no Festival de Cannes ganhando o Prêmio do Júri na Palma de Ouro, eu já sabia um pouco mais sobre o que estava fazendo. Porém, ainda se tratava de um curta de baixíssimo orçamento e, assim como na produção do Command Action, foi feita uma rifa com um quadro cedido pela minha mãe, para que tivéssemos o mínimo para um lanche e algo mais que fosse necessário.
Neste projeto, além de fazer toda a concepção visual do curta e figurino, ajudei encontrando locações e, como uma delas era um imóvel dos meus pais que estava para alugar, acabei trabalhando também na faxina do set! Isso é o que resume um curta de baixo orçamento.
O curta conta a história de uma adolescente que vive sua rotina em uma sociedade conservadora e religiosa, tentando encontrar uma fuga, o seu paraíso na terra. Para traduzir os dois universos em que a personagem principal transita, optei por trabalhar com cores quentes e frias, criando um contraste entre ambos, assim é possível notar a diferença entre o começo e o final do filme, não apenas pelas cores, mas pelas texturas, cenografia e figurino.
Uma das maiores dificuldades de se filmar e produzir no interior é a falta de profissionais e fornecedores especializados na área. Por exemplo, nas capitais, como São Paulo, ou nos grandes centros, existem acervos que locam objetos de cena e figurinos; na minha cidade não. Por outro lado, contamos com a ajuda de muitas pessoas. No caso deste curta, precisávamos de alguém que fizesse o efeito especial do fogo no final da história, e tivemos que contratar um profissional de Campinas, já que não havia nenhum na cidade.
Em 2016, trabalhei no meu primeiro curta-metragem com um orçamento, pois era uma co-produção com uma produtora francesa, o Meninas Formicidas, que estreou em 2017 no Festival de Veneza. Embora o orçamento fosse bem abaixo do mercado (na época não tinha conhecimento da existência da Sindicine²), para quem não tinha nada, aquele foi um momento importante, pelo menos não precisamos mais fazer rifa, e houve uma estrutura maior, principalmente para a produção e fotografia.
Já para mim, o maior desafio como diretora de arte foi realizar uma tarefa que não faz parte do departamento de arte, mas que abracei e mergulhei de cabeça: fazer um formigueiro, com formigas de verdade, que saíssem assim que o “veneno” fosse colocado.
Agora, você, meu caro leitor, que trabalha com cinema, deve estar se perguntando o porquê de eu, diretora de arte, ter que fazer um formigueiro. Quando você trabalha em um projeto e acredita muito nele, está formando suas parcerias na área, trilhando sua carreira, o diretor é seu amigo e sabe que, para você, não existe impossível. Então, você faz o que deve ser feito para que o filme aconteça, inclusive, passar um mês da sua vida (ou mais) estudando formigas, afinal, Meninas Formicidas sem formigas e formicida não existe.
Conversando com um amigo biólogo, ele me recomendou fazer uma visita ao Centro de Estudos de Insetos Sociais – CEIS, da Unesp Rio Claro.Lá conheci pessoas muito especiais, como a Manuela Carvalho e o Dr. Odair Bueno, que tiveram toda a paciência em ensinar uma diretora de artes que não entendia nada de formigas. E foi assim que fui capaz de construir um formigueiro cenográfico, de modo que, quando a atriz colocasse o veneno cenográfico líquido (maisena e leite) dentro do formigueiro as formigas saíssem, mesmo que na realidade o veneno seja uma fumaça e que quando ameaçadas as formigas entrem e vão bem fundo no formigueiro; mas essas diferenças da realidade foram escolhas da direção.
Em 2018, tive a oportunidade de ser selecionada para o Berlinale Talents e para o Art Departament Masterclass em Torino, na Itália, e foi neste momento que o meu conhecimento começou a se expandir, pois contei com professores e tutores experientes que trabalham para BBC Londres, Netflix, e vários filmes como Batman Begins, Dunkirk, Interstellar, O Céu da Meia-Noite, Thor, Star Wars, entre outros, e assim tive meu primeiro contato com grandes produções.
Até 2019, quando fui trabalhar no primeiro longa-metragem, roteirizei, dirigi e dirigi a arte de dois curtas-metragens (Já Ir e Tortura), onde vivi o grande desafio de ser a realizadora do filme e a diretora de artes. No primeiro, sinto que foquei mais na arte do filme do que na direção, e no segundo, foquei mais na direção e acabei deixando um pouco de lado a arte, por isso, chamei a minha mãe, que trabalhou comigo em todos os outros curtas como assistente de arte, para dividirmos a direção de arte.
Nesse período, também trabalhei em produções audiovisuais para publicidade e vídeos institucionais, tanto no interior como na cidade de São Paulo, onde tive contato com produções bem maiores do que as dos curtas que havia trabalhado.
Lembra quando contei que o primeiro curta-metragem que trabalhei estreou no Festival de Cannes em 2015? É lá que começa a história do primeiro longa-metragem: Casa de Antiguidades.
Enquanto eu e o diretor João Paulo Miranda Maria conversávamos, lá em Cannes, nos preparando para um pitching com produtores holandeses que iria acontecer no dia seguinte, ele me contou a ideia de um longa sobre uma casa abandonada, e assim começou a nascer o longa Casa de Antiguidades, que estrearia em 2020 no mesmo festival, porém, devido a uma pandemia mundial, ele não aconteceu presencialmente.
De 2015 até 2019 trabalhamos juntos com o Léo Bortolin, diretor de som, na concepção deste longa, com temporadas de reuniões semanais sempre na espera de “Agora vamos filmar!”, mas o processo burocrático de um longa não é o mesmo de um curta, e estávamos prestes a descobrir que muitas outras coisas que não sabíamos eram diferentes.
Nas nossas reuniões, a cada semana, discutíamos cerca de 5 cenas do filme. Assistimos a cenas de referências, filmes, víamos imagens, pesquisávamos em sites notícias relacionadas ao tema que discutíamos, buscávamos entender como aquelas pessoas, semelhantes às nossas personagens, pensavam, agiam, se vestiam, falavam. Na minha pesquisa pelos uniformes e roupas de proteção de trabalhadores industriais, naveguei desde o Ali Expresse até confecções brasileiras, mandando e-mails e cotando tais uniformes.
Nessa etapa de desenvolvimento, os encontros eram criativos, onde cada um dos três tinha total liberdade para opinar, sugerir, dar ideias e criar, afinal, o propósito era o mesmo: que o resultado fosse o nosso melhor trabalho.
Assim, o projeto do filme foi se delineando. O roteiro estava pronto e a decupagem já estava sendo trabalhada. De minha parte, os props já estavam separados, mas juntos com os objetos de cena, porque eu ainda não sabia diferenciá-los muito bem. Em 2019, a produtora me disse que achava melhor eu não assumir a direção de arte e sim a 1º assistência de arte, para adquirir experiência, assim o diretor poderia contar com alguém mais experiente. Eu imediatamente achei uma ótima ideia, e hoje sou grata a toda equipe que tanto me ensinou e fez desse trabalho um importante processo de aprendizagem.
Ao aceitar o convite de trabalhar como 1º Assiste de Arte, mesmo antes de começarmos de fato no projeto (ou seja, com orçamento), a diretora de arte Isabelle Bittencourt, com quem tive o prazer de trabalhar, já me passou a primeira missão: aprender a fazer planta baixa.Isso era algo que eu já tinha visto nos cursos que participei no exterior, porém não sabia que era o assistente de arte que a fazia, até porque existe uma grande confusão com as nomenclaturas. Por exemplo, o que chamamos diretor de arte no Brasil, nos E.U.A é chamado de production design, e o art director é o equivalente ao 1º assistente de direção de arte.
Outra grande diferença do curta para o longa é que, embora se tratasse de um longa-metragem de baixo orçamento, já era bem maior do que as produções dos curtas, e detalhes que antes a gente nem se importava, muitas vezes por falta de conhecimento ou orçamento, como criar rótulos de bebidas para não mostrar marcas, no longa não poderiam passar e a produção estava sempre atenta.
Das fotos antigas utilizadas no longa, por exemplo, várias são da minha família, e algumas encontrei no arquivo público de Rio Claro e obtive a autorização de imagem. No início do trailer, por exemplo, você verá no canto uma foto em preto e branco de um menino, esse menino é o meu tio. Ou seja, embora a produção fosse maior, muito do que fazíamos nos curtas levamos para o longa, até mesmo para não perder a essência do meu trabalho com o do diretor João Paulo Miranda Maria.
Se antes estávamos acostumados a filmar aqui no interior de São Paulo, na nossa cidade, dessa vez estávamos filmando também no interior, porém de Santa Catarina, assim, ficamos 2 meses mergulhados no trabalho de segunda a segunda, mesmo tendo o domingo de folga, afinal, alguém (eu) precisava organizar os objetos para filmar na segunda.
Também trabalhei criando várias artes gráficas utilizadas na cenografia, como posters de cerveja, a foto do casal que Cristovam encontra na casa abandonada, entre outros.
Aprendi muitas coisas, como usar o AutoCAD, Illustrator, entender de fato o que são os tais dos props e quais as funções de cada membro da equipe. Minhas responsabilidades cresceram, assim como a minha bagagem, tanto a física, já que parte dos objetos e figurino do filme estão guardados comigo, quanto a profissional, que conseguiu ser ainda maior!
Hoje, com alguns anos de carreira e ainda muito o que aprender, quando me encontro com pessoas que desejam seguir nessa profissão, a dica que dou, embora acredite que não exista caminhos certos ou errados, é que, se tiver oportunidade, faça diferente do que fiz. Comece estagiando com diretores de arte, aprenda o máximo possível com eles e com os assistentes de arte.Se aventure em todos os projetos que puder, buscando se tornar um profissional cada vez melhor, para quando chegar a ser diretora ou diretor de arte, tenha todo o conhecimento e segurança possível. Não tenha medo de perguntar, estude, e nunca desista, afinal, como diria Glauber Rocha: “a arte não é só talento, mas sobretudo, coragem”.
[notas]
(1) O termo Props vem do inglês property, propriedade. Trata-se de um objeto usado tanto no audiovisual como no teatro por atores durante uma cena. É considerado qualquer coisa móvel ou portátil que não é cenário ou figurino. É um objeto usado pelo ator e que está descrito no roteiro.
(2) Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica e do Audiovisual.