Além (da) Imagem

Colette e Lucie

E se os pássaros fossem…

Era um dia pela manhã. Era uma manhã cinzenta com um pássaro na janela.

Eu posso acreditar no aconchego que Colette diz a Lucie, a jovem que acompanha a derradeira resistente, depois de ouvir o canto dos pássaros: “Quem sabe os pássaros não são a coletânea de nossas tristezas? Talvez seja Jean Pierre dizendo que está feliz”. Se me diz que os pássaros são vozes do passado, eu posso acreditar.

Colette acolhe. Uma pequena cena inicial, em que a protagonista se dirige e pede ao pássaro pousado em seu parapeito para que não tenha medo e não fuja, me deixa a vontade de contar quantas vezes o filme todo cabe aqui, nesta sequência.

Atravessando a janela, com Collette e Lucie, a possível brisa se transforma em uma densa parede, que Colette lembra ser Jean-Pierre capaz de atravessar. De tão pesada, ela cai pelos olhos das duas meninas. “Por que não trouxe flores?”, pergunta Colette a Lucie. Corporificar em flores é certamente para que os pássaros se aproximem.

O horror deste mundo, guardado em intocáveis espaços, nos cai sobre a cabeça e toma forma no simbolismo que se apropria de ruínas. A memória e a construção.

“Se essas colinas falassem, nós ouviríamos gritos.”

Gritaria mais alto do que podemos enxergar.

Colette e Lucie olhando fotografia de Jean Pierre

Ao se prepararem para encarar o invisível, é de encorajante delicadeza o ato de tirarem juntas o retrato de Jean-Pierre da parede. Como Lucie já havia avisado antes, retomar as feições é mais poderoso do que listar os nomes. A individualização, a personificação, que neste tempo ouvimos todos os dias, não é só um número.

E é então, quando se familiariza, que se faz a ausência.

Colette e Lucie no campo de concentração

Empilhando vazios.

Colette conta, no início da travessia, como a incomodava determinados comportamentos de visitantes em um campo de concentração.

Nitidamente, apesar do “turismo mórbido” em seu pior sentido mencionado por ela própria, é certo esperar o inevitável.

É inevitável olhar o mar e não delinear o que teria além dele. Se equilibrar em cima do trópico e pensar no que isto significa. Quem esteve aqui, o que era isto, quando isto foi medido? Onde estão estas pessoas?

Olhar um retrato em cima do móvel, perceber que agora existe um quarto que está vazio. 

Aprendi que experiências não se comparam e não podem ser contadas fielmente aos fatos.

“Jean- Pierre morreu em 22 de março de 1945. Três semanas antes das tropas americanas libertarem os campos.”

Tão inevitável. Pensar, calcular, milimetrar, quantificar as possibilidades de ter mudado o passado ou o presente, dependendo de quem é você. Contar. Pessoas, dias, trabalho, comida.

“Estudar este período mórbido e violento da História pode nos ajudar a prevenir que isso não aconteça de novo”, diz Lucie, antes de saber por Colette que entrar para a resistência não era uma simples escolha, mas que uma vez dentro dela não haveria volta.

Acolhimento no desalento.

 

 

[notas]

Colette, Anthony Giacchino, 2020, Oscar de Melhor Documentário de Curta-Metragem de 2021

As falas das personagens foram traduzidas livremente pela autora.

Disponível no YouTube (com legendas em inglês): https://www.youtube.com/watch?v=J7uBf1gD6JY

Paloma Gomide

Graduada em Cinema (UFSC) e em Fotografia (Univali). No cinema, tem trabalhado com documentários e no departamento de arte. Na fotografia, desenvolve projetos documentais autorais, entre os mais recentes está a participação na residência fotográfica Missão NEFA BC, realizada em Balneário Camboriú. Atualmente trabalha na Plural Filmes e como produtora cultural no Núcleo de Estudos em Fotografia de Florianópolis. É diretora criativa da revista Além (da) Imagem.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *