O cinema deste século (que já tem 24 anos) veio para quebrar alguns tabus que ainda existem na nossa sociedade. Um deles é o debate sobre sexualidade feminina e etarismo, que foi trazido por obras como Grace & Frankie (criada por Marta Kauffman e Howard J. Morris, 2015 – 2022), Alguém tem que ceder (dirigido por Nancy Meyers, 2003), As Horas (Stephen Daldry, 2003), Simplesmente Complicado (Nancy Meyers, 2009), Do Jeito Que Elas Querem (Bill Holderman, 2018), Vovó Saiu do Armário (Ángeles Reiné, 2021) e Boa Sorte, Leo Grande (Sophie Hyde, 2022), entre outras tantas que vêm ganhando notoriedade mostrando mulheres mais velhas que exploram seus corpos e vivências.
Uma dessas obras é o curta-metragem O prazer é todo meu, dirigido por Vanessa Sandre, a quem pude entrevistar.
O que te inspirou a escrever este roteiro?
Escrevi essa história em 2017, no período que estava cursando mestrado e meu objeto de estudo era a representação da mulher no cinema comercial. Eu estava extremamente incomodada com a forma que nós mulheres somos representadas no cinema, quase sempre por uma perspectiva do olhar masculino (male gaze), que nos objetifica e sexualiza. Nesse sentido, a mulher só tem valor quando é jovem e está inserida em um padrão de beleza estético que não condiz com a realidade plural dos corpos femininos. Acredito que a angústia gerada a partir do entendimento dessa posição de objetificação feminina me fez agir de alguma forma pra mudar esse cenário. De uma certa maneira, acredito que eu estava procurando uma antítese desse cinema, e pensei “qual seria o oposto de um corpo feminino jovem e sexualizado em prol do prazer masculino?”. A resposta foi certeira: um corpo feminino velho, com suas marcas e cicatrizes, visto a partir do ponto de vista do próprio prazer feminino. Foi assim que nasceu ‘O Prazer é Todo Meu’.
No filme, a personagem Amélia muitas vezes nos conta sobre suas sensações e pensamentos apenas com expressões e gestos. Como foi dirigir a atriz Margarida Baird nesses momentos?
Dirigir a Margarida foi um grande privilégio e aprendizado. Foi um processo muito bonito e de muito carinho e confiança, afinal, falar da sexualidade feminina é sempre um assunto delicado e que pode nos atingir de diferentes formas. De uma maneira geral acredito que nossas existências como mulheres no mundo é interseccionada por diversas violências e repressões, então pra mim foi muito importante criar esse espaço de confiança. Eu sou bem exigente com atores, é a minha parte preferida do processo de gravar um filme e acredito que o ofício principal de uma diretora ou diretor é saber, antes de tudo, lidar com o material humano em cena. Eu já havia trabalhado com a Margarida em diversos outros projetos e ela estava muito animada para esse papel, assim como eu estava muito animada pra contar essa história, então nós duas colocamos bastante libido nessa personagem.
Foi um processo muito bonito. Acredito que alcançamos esse resultado maravilhoso com ela interpretando Amélia, porque confiamos muito uma na outra, e porque a Margarida foi muito generosa em permitir que eu a conduzisse nesse processo.
Nosso maior desafio era exatamente encontrar essas sutilezas dos gestos e expressões da personagem na Margarida. Como ela faz muito teatro e é naturalmente uma pessoa bem expressiva, eu tive o cuidado de fazer um trabalho de ‘limpeza’ no gestual dela até encontrarmos o tom da personagem. Por isso eu prezo tanto pelos ensaios, que são esses momentos de exploração, pesquisa e diálogo entre diretora e atores. E eu ouso dizer que eu não sabia de todo o potencial da Margarida até começarmos a gravar. Ela é uma gigante em cena, e mesmo depois de tantos ensaios, ela me surpreendia em cada cena gravada. Lembro da primeira diária que gravamos uma cena, muito simples a princípio, dela se olhando no espelho. Foi um daqueles momentos de puro deleite, em que todos no set estavam extasiados com o poder de uma cena simples, mas feita por uma atriz brilhante.
Há uma cena de nudez que é muito bela, mas que pode ter exigido um cuidado maior na lida com a atriz e a equipe. Como foi esse processo?
Foi um processo muito lindo e de muito cuidado. Conversamos muito sobre sexualidade, sobre nossas experiências e cicatrizes. Existe algo muito potente que se cria quando mulheres se conectam nesses lugares de vulnerabilidade. E claro, o entendimento do porquê dessa cena de nudez, que não é algo gratuito. Essa é uma cena essencial, na qual a personagem, talvez pela primeira vez na sua vida, se olha com amor e carinho. É a primeira vez que percebe a potência do seu corpo como veículo de prazer. Numa sociedade que reforça o tempo inteiro que não somos o suficiente, que nos escraviza dentro de um padrão de beleza inalcançável, encontrar a beleza e potência nos nossos corpos se torna algo revolucionário. E quando a gente fala de corpos velhos, é ainda mais revolucionário. Entender que somos seres sexuais e que o prazer faz parte da nossa existência em todas as idades.
No set tivemos o cuidado de deixar a Margarida o mais confortável possível. Nas cenas de nudez tínhamos a equipe mínima dentro do set, e eu fiz questão de estar o tempo todo ao lado dela e de respeitar o tempo de preparo. Acho que no fim foi uma ótima experiência pra todo mundo.
Você recebeu alguma crítica negativa por tratar de um tema polêmico no filme? Se sim, como lidou com isso?
Não lembro de nenhuma crítica negativa. Acredito que o mais perto disso foi a reação de alguns homens quando escutavam sobre o assunto do filme e era visível que se sentiam incomodados. Mas o filme é pra ser incômodo mesmo, porque é um assunto tabu, então eu sempre entendi essas reações como algo positivo.
Como tem sido a recepção do filme para o público? Já recebeu comentários de um público mais velho, com mais de 70 anos?
Tem sido uma experiência incrível para mim. As reações são muito positivas, e muitas vezes até emocionadas. Como comentei anteriormente, falar da sexualidade feminina, ainda mais com um recorte de idade, toca num lugar muito íntimo e vulnerável das pessoas em geral, mas principalmente das mulheres. Não foram poucas vezes que mulheres depois da sessão vieram conversar comigo muito tocadas, ou até mesmo chorando. Mas sinto que muitas vezes não era necessariamente um choro voltado para a dor, mas sim um sentimento de alívio ou até mesmo encantamento por se verem representadas na tela pela primeira vez nesse contexto. Já apresentei pra diversos públicos, incluindo mulheres idosas. Mas fico muito surpresa de atingir um público muito mais amplo do que o da terceira idade, e de diferentes contextos sociais também. O filme tem sido muito bem recebido no circuito de festivais LGBTQIAP+ e no exterior. Acho um feito conseguir engajar um público de uma língua e cultura diferente, e eu não tinha ideia que essa história seria tão bem recebida e abriria tanto espaço pra discutir esse tema. Como roteirista e diretora, esse é o meu objetivo – poder me comunicar com o público, e acredito que consegui fazer isso com esse filme. Mas claro, não fiz esse filme sozinha, tive uma equipe incrível que abraçou a ideia e que entregou todo o seu talento pra que isso acontecesse, e acredito que esse é um dos grandes motivos da potência e sucesso desse trabalho.
Além de O prazer é todo meu, outras obras que tratam da sexualidade de mulheres na menopausa estão surgindo recentemente, como o longa Boa sorte, Leo Grande e a série Grace and Frankie. Como você vê esse assunto surgindo na pauta cinematográfica e quais diferenças de obras quando são escritas e dirigidas por mulheres ou por homens?
Sim, esse é um assunto crescente. Acredito que falar da sexualidade feminina é parte integrante desse movimento de se questionar a forma com que as mulheres são representadas na tela. De entender as mulheres como público consumidor e que quer se ver de maneira honesta e não objetificada e/ou subalternizada. E parte disso é se questionar de onde vêm as histórias que consumimos. Em uma indústria majoritariamente conduzida por homens (brancos, héteros, etc), fica mesmo difícil encontrar diálogos que representem qualquer coisa além do que é do interesse deles próprios de consumir. E ficou mais fácil esse diálogo com a internet e redes sociais, tanto das mulheres demonstrarem sua indignação, quanto para os produtores nos entenderem como público. E sim, eu acredito que tem bastante diferença quando comparamos filmes feitos por mulheres versus filmes escritos e dirigidos por homens. E quero deixar claro aqui que eu acredito que homens podem sim escrever histórias sobre mulheres e eu acho isso extremamente necessário, e muitos fazem isso de forma magistral. A questão mesmo é a falta de espaço para as próprias mulheres escreverem suas narrativas, contar suas histórias, com o seu próprio olhar (female gaze). Essa pluralidade de visões é muito importante no cinema, e ela existe, mas não é totalmente absorvida pelo cinema mainstream (comercial). Estamos no caminho, mas ainda temos uma jornada muito grande pela frente.
Como Boa sorte, Leo Grande te inspirou e quais as semelhanças e diferenças você vê entre os dois filmes?
Eu estava me preparando pra gravar ‘O Prazer é Todo Meu’ em 2022, já estava esperando desde 2020 para poder gravar por conta da pandemia. Daí assisti ‘Boa sorte, Leo Grande’ e fiquei chocadíssima. Porque o filme tinha cenas iguais às que eu tinha escrito! Como a cena dela no espelho e a cena de masturbação, que até então eu não tinha encontrado em nenhum outro filme. Num primeiro momento fiquei achando que as pessoas iam comparar os filmes e dizer que o meu era algum tipo de imitação, mesmo tendo sido concebido anos antes do longa em questão. Daí depois entendi que eu não estava inventando a roda, tanto meu filme como “Boa Sorte, Leo Grande ” são produtos do nosso tempo, são materiais oriundos das ideias e discussões dentro do cenário cultural, e é muito comum que essas semelhanças aconteçam. Entendi que isso era ótimo, que era um espaço gigante se abrindo pra contar narrativas sobre mulheres mais velhas, que ainda são absolutamente sub representadas. O filme me inspirou de diversas formas, é uma obra lindíssima e muito sensível. Mas também me desafiou a repensar as cenas que eram semelhantes, como eu poderia trazer uma nova maneira de filmar algo muito parecido. E eu achei um ótimo desafio como diretora.
Quais dicas você dá para outras diretoras jovens que querem contar histórias de personagens idosas?
Eu acho que tem menos a ver com idade, mas sim com a experiência com o feminino, com o humano. Como mencionei anteriormente, o filme dialoga com o público de diversas idades. Acredito que a reflexão sobre se sentir mulher no mundo (e aqui incluo tanto a experiência cis quanto trans) é o que me conectou com essa personagem. E claro, no processo de criação de personagem que está fora da nossa zona de conforto, o processo de pesquisa é muito importante, como observar pessoas a sua volta, assistir filmes de referência, etc.
Quais diretoras te inspiram?
Tantas! Eu gosto muito do cinema comercial porque dialoga e abrange um público mais amplo, mas quando vou falar de cinema feminino eu tenho um encanto muito grande pelas diretoras que trabalham um cinema mais experimental e/ou “de arte”. Chantal Akerman, Agnes Varda, Laura Mulvey, são diretoras vanguardistas que me inspiraram muito. Sou também apaixonada no trabalho da Catherine Breillat, diretora francesa que aborda a sexualidade da mulher de uma forma muito provocativa, e por vezes, até extrema. Naomi Kawase, Lucía Puenzo, Claudia Llosa, Ana Muylaert…só para citar algumas.
Você já tem um próximo projeto como diretora em mente? Quais seus planos para o futuro?
Tenho vários projetos voltados para o tema de imigração, já que agora sou uma imigrante brasileira vivendo no Canadá. Imigrar é um processo complexo e muito pessoal, e tomou minha vida de uma maneira tão intensa que nesse momento se tornou meu objeto artístico. Acredito que a arte é uma maneira de dar vazão às questões que nos tocam, que nos afligem e que movimentam nossos afetos. Me sinto privilegiada de ter o cinema como ferramenta pra lidar com essas questões.
No momento estou desenvolvendo alguns curtas e escrevendo o meu primeiro longa de ficção. Meu plano principal é agora me consolidar como diretora, roteirista e produtora aqui no Canadá.
Sobre a diretora
Vanessa Sandre(ela/dela) é roteirista, diretora, produtora e atriz. É Bacharela em Cinema e Mestra em Literatura com foco em Feminismo e Estudos de Gênero, ambos pela UFSC. Vanessa acumula 14 anos de experiência na área audiovisual, e como roteirista e diretora assina os curtas-metragens de ficção Nuvem (2014), e O Prazer é Todo Meu (2023), ambos filmes premiados no Brasil e internacionalmente. Seu trabalho é movido pelo desejo de explorar narrativas de vozes sub-representadas no cinema por meio de uma perspectiva feminista, interseccional e decolonial.