Era fevereiro. O ano, 2020. Tudo ainda estava normal. Faltando poucas semanas para o carnaval, uma das minhas tias me procura comentando sobre a vontade de levar a minha avó para um passeio pela serra catarinense. Fizemos então uma viagem em família até Urupema.
Sempre tive um relacionamento muito próximo com a minha avó, mas, nos últimos anos, nosso convívio vinha se resumindo a um almoço casual ou um café da tarde durante a semana. A cada ano, eu notava que as nossas conversas vinham ficando mais curtas. Mesmo esbanjando saúde, sua memória já não era mais a mesma, e os nossos assuntos acabavam rápido. Afinal de contas, já são mais de noventa aniversários vividos.
Ao longo desses poucos dias que passamos em Urupema, tive uma enorme vontade de registrá-la. Sempre tive muita consciência sobre o valor do registro em imagem e, naquele momento, tive uma sensação muito clara de que eu poderia estar perdendo tempo.
Minha formação é em cinema, e há alguns anos venho me dedicando à realização audiovisual. Trabalho essencialmente como diretora de fotografia, muito embora eu tenha percorrido um caminho pela assistência de câmera e, às vezes, me aventure em programas de edição e finalização. O cinema documentário sempre me cativou e representa grande parte dos projetos em que trabalho. Meu filme de conclusão de curso na graduação, Fotossensivel, foi justamente um documentário curta-metragem narrado pelo meu falecido pai, que busca expressar a importância do registro visual como preservação da memória, tendo como fio condutor um vínculo fotográfico e geracional na minha família. É portanto um filme íntimo e pessoal.
Pois bem, ironicamente, cerca de 20 dias depois do nosso carnaval na serra, estávamos eu, minha avó e minha mãe, vivendo nossa primeira pandemia. O mundo inteiro parou, e a necessidade de adequar-se frente a uma nova realidade tomou proporções globais. Não somente a minha vida profissional foi paralisada, mas também o meu dia-a-dia passou por reconfigurações, com a presença da minha avó em nossa casa. Ajudá-la a acordar, conduzi-la até a cozinha para o café da manhã, situá-la no tempo e no espaço, inventar passatempos, jogar baralho todas as noites, fazer sala.
Não demorou muito para que eu testemunhasse uma cena que me chamou muito a atenção. Estávamos “reunidos” em família através das novas plataformas virtuais. “Olha aí, cada um na sua casa, quando que eu pensei que iria ver isso um dia na minha vida?” dizia ela, espantada, frente à tela do computador, com todos os filhos, netos e bisnetos conectados. Os olhinhos brilhavam e a emoção visivelmente transbordava. Aquilo parecia ser muito revolucionário.
A tecnologia nos engoliu ainda mais, e agora nem mais os exercícios físicos escaparam da nossa modalidade virtual. Se pra mim isso já soa meio absurdo, pense então pra uma senhora de mais de 90 anos.
Era tudo tão inusitado quanto inédito, um verdadeiro momento histórico. Foi então que recordei nossos dias vividos em Urupema, e retomei meu desejo de filmá-la. Recorri aos meus bons e velhos parceiros de trabalho e reuni todo o equipamento que precisava. Algo simples, bom, leve e que desse conta de ter um bom áudio e uma boa imagem. Nasceu assim, despretensiosamente, um registro documental e carinhoso sobre a nossa nova rotina juntas. O acordar, tomar café da manhã, ver e rever as mesmas espantosas notícias, dia após dia. A perda da memória recente e o constante relembrar e esquecer, relembrar e esquecer. Todo dia, descobrir que um novo vírus se espalhou pelo planeta, levando milhões à morte. Todo dia.
Além de todo o ineditismo daquele momento, e da provável importância futura que seria registrá-lo, acreditei que esse material funcionava também como um testemunho sutil sobre o natural processo do envelhecimento. Não apenas uma história de uma avó e uma neta, mas também um registro cotidiano desse tempo tão difícil de ser adjetivado, a partir da perspectiva de uma neta sobre sua avó.
Inicialmente, eu não podia imaginar que fim isso teria – nem as imagens, nem a pandemia –, mas aos poucos fui compreendendo que nascia mais um filme de família. Confesso que a minha dedicação para essa realização foi muito útil para enfrentar os dias de quarentena. Foi uma grande forma de ocupar a mente e preencher o tempo. Todo o processo de construção de uma narrativa, assim como todo o processo de captação e montagem, foi muito enriquecedor para o meu entendimento sobre o audiovisual. Precisei, de fato, me responsabilizar por todas as funções técnicas sozinha (como a luz, o quadro, o som, a montagem, a cor), além de encarar a difícil missão de ser personagem e diretora ao mesmo tempo. Um verdadeiro mergulho cinematográfico, no qual muitas decisões precisavam ser tomadas por uma única pessoa, eu, distanciando-se da concepção que temos sobre o cinema como obra coletiva.
Todo esse processo foi muito bacana, e o filme foi nascendo no dia-a-dia. Buscava deixar a câmera e os microfones posicionados estrategicamente em locais onde eu tinha certeza de que ela estaria: a mesa do café da manhã, o sofá da sala, o quarto. Não era tão difícil fazer essas previsões diante de uma rotina tão sistemática. Procurei repetir os mesmo quadros, as mesmas lentes, e os mesmos eixos, na tentativa de reforçar uma ideia de repetitividade e monotonia. Também me preocupei em deixar a câmera sempre próxima, não escondendo o cenário em que estávamos, dando ao filme uma sensação de intimidade, trazendo o espectador para perto, para dentro. Eu não queria uma câmera “roubada”, “disfarçada”, pois de fato ela nunca esteve. Era como se a câmera fizesse parte do ambiente. Era sempre percebida e questionada, embora logo esquecida.
Após as primeiras cenas capturadas, comecei a buscar um sentido pro material. Pouco a pouco fui percebendo que o rumo do filme era ditado também pelos rumos da pandemia. As notícias, as faltas de perspectivas, e também o catastrófico cenário brasileiro. O filme foi sendo amarrado aos sentimentos de fragilidade e incertezas em relação ao futuro, à nossa expectativa de voltar a um estado de normalidade.
Mais de ano depois da nossa temporada juntas, tenho finalizado um longa-metragem de 70 minutos, chamado Já bateu meio-dia?. Parte desse material também serviu para uma versão de um curta-metragem de 3 minutos, que para a minha surpresa, foi contemplado pelo edital Arte como Respiro, lançado pelo Itaú Cultural como edital de emergência para o setor audiovisual. O curta se chama A luta e está disponível no youtube.
Hoje, enquanto aguardo por dias melhores, aguardo também que questões relacionadas aos direitos autorais de trilha sonora e pequenas pendências de produção que envolvem sua distribuição sejam solucionadas.
De tudo o que envolve esse filme, o mais difícil foi terminar de montá-lo, assim como está sendo difícil terminar esse texto. Ainda que 2020 mereça ser esquecido, é nosso papel deixá-lo bem registrado, como forma de honrar uma temporária existência e preservar nossa passageira memória.
Assista ao longa Já bateu meio-dia? no Festival Guarnicê de Cinema Edição 44
1 comentário em “Nossa passageira memória”
Que bom saber que o curta virou longa. Tinha amado
o curta. Ansiosa pra ver