A realização do curta-metragem Uterus parte de uma urgência pessoal e transcende para questionamentos sobre uma sociedade cheia de preconceitos que silenciou a vida de muitas mulheres. Por que a trajetória de minha avó Dirce é negada? Por que não é possível falar claramente sobre seu trabalho? Por que não há registros fotográficos dela? Essa história fala de uma mulher em total vulnerabilidade, de sua impossibilidade de exercer seu direito à maternidade no contexto da prostituição, de sua invisibilidade e de seu silenciamento.
O processo de investigação se inicia aos meus 19 anos, porém não segui adiante. Retomo as buscas vinte anos depois, onde descubro através de relatos que minha mãe havia sido sequestrada quando era bebê por meus avós adotivos e que Dirce, minha avó de sangue, era uma prostituta. Dirce engravida aos 22 anos, orfã de mãe, expulsa de casa por seu pai e abandonada por seu companheiro, passa a viver em situação de rua e começa a se prostituir ainda grávida. Quando sua bebê nasce, deixa sua filha aos cuidados de Dolores para poder trabalhar e um dia, ao voltar para buscá-la, não a encontra mais. Passa toda a sua vida em busca de sua filha roubada, porém lhe negam apoio por ser uma prostituta em situação de extrema pobreza, é ameaçada de morte e convencida de que sua bebê estaria melhor com uma família tradicional, longe da zona de prostituição.
Em um cartório na Vila Mariana, em São Paulo, encontro a verdadeira certidão de nascimento de minha mãe e a certidão de óbito de Dirce, que morreu de câncer no útero no ano de 1995, na cidade de Marília. Dizem que ela sofreu muito com a doença e morreu agonizando ao lado de uma amiga. Sinto o desejo iminente de ver o rosto de minha avó e parto em busca de sua imagem. Nesta jornada me deparo com o preconceito e a estigmatização em relação ao trabalho que minha avó exercia. As informações distorcidas ou omitidas sobre Dirce me atravessam e entendo que é exatamente aí a fonte de toda minha criação. Muitos não querem falar, dizem que já se passaram muitos anos e não lembram de nada, me indicam outras pessoas, pedem para não gravar e até a sua melhor amiga prefere não ter a imagem vinculada ao filme, menciona estar feia e mal-arrumada. Construir essa memória é entrar em contato com o que me compõe e isso me é negado.
Sigo com as investigações e as metáforas naturalmente transbordam. Descubro que minha avó viveu por muitos anos em uma pequena casa de madeira com um poço no quintal onde todos os vizinhos buscavam água. A casinha já não existe mais, o terreno está baldio e o poço foi enterrado com entulhos.
Volto à São Paulo e experimento ao lado de minha mãe algumas performances. Peço que imagine Dirce em sua frente e que escreva a ela uma carta. Depois em um quarto escuro, num jogo de luz e sombra, Sonia acaricia o rosto de sua mãe, dança com o que está oculto, sua imagem se funde e se confunde com a minha. Fazer este filme se torna a possibilidade de construção, transformação e cura.
Em 2023, vou para a Escuela Internacional de Cine y TV, em Cuba, estudar Cinema Documental e dou início à pós-produção de Uterus, que nasce como resultado da minha tese de mestrado. A montagem deste filme foi um processo muito doloroso e que me exigiu muita coragem. Ressalto a importância das consultorias potentes e sensíveis que me conduziram para o resultado deste trabalho: Jerónimo Atehortua, Alan Berliner, Affonso Uchoa, Ana Pfaff, Orisel Castro, Fern Silva, Augustina Comedi, Mercedes Gaviria, Leandro Listorti, Jessica Rinland, Ana Pereira, Bruno Santamari e do apoio e contribuição das grandes amigas que estiveram ao meu lado, Paloma Gomide, Kelly Sánchez, Pablo Andrés, Cris Raséc, Diana Patiño, Oscar Guesgan e Monica Torregrosa.
De volta ao Brasil, me integro ao Coletivo Mulheres da Luz, que luta pelos direitos às Mulheres em Situação de Prostituição na região da Luz em São Paulo. Penso nas histórias dessas mulheres em situação de prostituição, vulnerabilidade e extrema pobreza, histórias que se repetem dentro da estrutura principalmente de países colonizados, que carregam em sua memória as marcas da violência e do abuso contra a mulher e dou início ao processo de desenvolvimento do meu longa-metragem A Senhora Dirce.