Além (da) Imagem

A Escavação

A Escavação

[olhando o monte]

O que nos faz ver um filme? Geralmente, vemos a sua superfície, a grama: seu título, os atores que participam, pedaços de seu conteúdo expostos no trailer. Dificilmente temos contato com a sua essência neste momento, e ela só será percebida quando o controle remoto apertar o play e a escavação começar. Há filmes, ainda, que permanecem encobertos mesmo depois do fim, e aquilo que realmente importa só é descoberto quando o assistimos de novo ou pensamos sobre ele.

A minha experiência com A Escavação (The Dig, Simon Stone, 2021) foi diferente. Sem eu ter visto o filme, minha mãe me perguntou porque o diretor tinha colocado alguns diálogos somente no som, sem que os atores falassem. Eu imaginei que pudesse ser um filme sobre a incomunicabilidade e perguntei se aquelas falas não eram, na verdade, pensamentos dos personagens em voice over. Ela disse que não, os personagens se comunicavam, mas às vezes não mexiam a boca. Me interessei e fui assisti-lo. Sem perceber, a minha mãe tinha me revelado toda a estrutura sobre a qual aquela história se decantava: a montagem de tempos.

Cena do filme

 

[a superfície: retirando a grama]

O longa conta a história de uma mulher, Edith Pretty (Carey Mulligan), que contrata o arqueólogo Basil Brown (Ralph Fiennes) para escavar alguns montes de sua propriedade à procura de vestígios do passado. As camadas de tempos não estão somente no assunto do filme, mas na sua origem: é baseado em um romance que foi escrito a partir de uma história real; e também na sua forma: os diálogos às vezes são ouvidos enquanto são falados, outras vezes, aquilo que ouvimos está em um momento anterior ou posterior àquilo que vemos. Camadas de tempos são percebidas em um mesmo momento.

Em 1939, no início da Segunda Guerra Mundial, houve uma escavação histórica nas terras de Edith Pretty, no Reino Unido. Anos depois, o romancista John Preston, sobrinho de Pretty, resolveu recontar esta história e, assim, passou uma camada de literatura por cima dela. O tempo transcorreu, e o diretor Simon Stone depositou a sua camada cinematográfica no material deixado por Preston. Agora eu escavo este monte.

Cena do filme

 

[as primeiras camadas de terra: a ideia cinematográfica]

Em uma conversa com Edith sobre a descoberta do túmulo de Tutancâmon, Basil diz que neste momento o tempo perdeu o sentido. O que perde sentido na escavação que encontra o passado não é o tempo, mas sua linearidade. Quando os dias, meses, anos, transcorrem, temos a impressão de que aquilo que tínhamos não temos mais, o momento que vivemos hoje não voltará nunca a ser vivido, e o que nos resta são memórias, às vezes tão antigas que se desmancham como terra em nossas mãos: são apenas fragmentos. No cinema, este perecimento perde o sentido. Seja numa montagem paralela que reveza instantes diferentes em uma sequência (um corpo soterrado sendo resgatado/o mesmo corpo sendo carregado posteriormente), seja na união do som (uma voz) de um momento com a imagem de outro, a linearidade do tempo é ressignificada. No cinema, o que foi soterrado resiste.

Gilles Deleuze, em O ato de criação, fala sobre o que seria uma ideia em cinema e trata justamente desta resistência: “a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se na terra” (DELEUZE, 1999, p.9). Desconstruir a linearidade do tempo não é, necessariamente, uma ideia em cinema, mas é próprio do cinema fazê-lo. As vozes de Basil e Edith são ouvidas por nós, ao mesmo tempo que as vemos serem reverberadas nos personagens, momentos após o diálogo.

É impossível falar da busca pelo tempo perdido sem falar também da morte, e ela está presente em todo o filme. Em uma sequência no início, após Edith Pretty contratar o Sr. Brown, ela vê a morte três vezes: a morte-presente, a morte do passado, a morte futura. Primeiro, anda de carro e avista os soldados indo para a guerra. Quantos deles retornarão (retornaram) com vida? Quantos deles se tornaram lembranças embaixo da terra? Depois, ela visita o túmulo onde seu marido foi enterrado, e, quando está voltando, ela sente uma dor: o anúncio de sua própria morte. No entanto, falar de vidas humanas que há séculos andaram no espaço que pisamos, procurar suas memórias enterradas nas camadas e camadas de tempo é, de certa forma, uma maneira de enganar a morte.

O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido. (DELEUZE, 1999, p.10)

Como o Sr. Brown diz, escavar é revelar a vida. É lembrar, é não permitir que homens como ele, trabalhador sem estudos formais, mas um dos responsáveis pela descoberta do tesouro histórico, sejam enterrados e esquecidos. Apesar de ter iniciado a escavação e ter sido fundamental no processo, a princípio o seu nome foi apagado dos registros no Museu Britânico, onde hoje se encontra o tesouro descoberto; mas o passar do tempo o resgatou.

 

[as outras camadas de terra: a ficcionalização do real]

Simon Stone transformou a história de A Escavação em um filme, mas não haveria onde se depositar a camada cinematográfica se John Preston não tivesse antes colocado a sua camada literária, que foi a ficcionalização de uma história real.

A ficcionalização não é, necessariamente, uma ideia em literatura (a ficção está presente em toda a nossa relação com a narrativa, seja ela real ou imaginária), mas ela tornou-se literária, neste caso, no momento em que Preston resolveu contar o evento em forma de romance. Ele recriou os personagens que já existiam e criou outros, inventou conflitos e vontades, e o fez utilizando um recurso muito usado na literatura: a alternância do foco narrativo. Enquanto que no cinema a narradora (câmera) muitas vezes tem uma postura de observadora neutra (não onisciente), como acontece no filme de Stone, na literatura a história pôde ser narrada ora por um personagem, o Sr. Brown, ora por outro, a Sra. Pretty, e outros narradores também puderam compartilhar as suas vozes, subjetividades e pontos de vista, como Peggy Piggott, uma moça que vai trabalhar na escavação e tem o seu próprio enredo, e Robert Pretty, filho de Edith.

É recorrente o debate, quando tratamos de adaptações da literatura para o cinema, sobre a fidelidade da adaptação dos acontecimentos da narrativa, quando um debate mais interessante seria como cada uma das obras usou os seus próprios meios para melhor contar o desenrolar dos eventos. No cinema, Simon Stone usou a montagem de tempos para contar a história do Sr. Brown e da Sra. Pretty, recurso este que pode ser reproduzido na literatura, como em O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, mas que não é próprio da literatura. Da mesma forma, a escolha de Preston no romance, de contar a história sob as diferentes e limitadas perspectivas dos personagens, pode ser reproduzida no cinema, como em O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan ou O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, onde a câmera não é uma observadora de cima, mas está ao lado dos personagens. Esta limitação do olhar-mostrar, entretanto, não é comum no audiovisual. Assim, posso dizer que os caminhos escolhidos pelo romancista e pelo diretor foram acertados: utilizaram as ferramentas disponibilizadas por suas artes, a literatura e o cinema, na escavação da narrativa.

Cena do filme

 

[o tesouro escondido: a potência da história]

Não é necessária uma grande descoberta arqueológica que mudou os conhecimentos sobre os anglo-saxões para se contar uma boa história. Eventos banais, como um encontro com uma barata (A Paixão Segundo GH, de Clarice Lispector), um passeio pela ruas de Londres para comprar flores (Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf), ou pelas ruas de Paris (As mãos negativas, Marguerite Duras) podem gerar belos romances ou filmes.  Todas as narrativas, sejam elas reais ou ficcionais, são tesouros escondidos à espera de serem descobertos. Nós, artistas, só precisamos garimpar. É preciso escavar para contar histórias, lembrar-se de Basil Brown e dos soldados que morreram nas guerras. Narrar é resgatar a vida dos judeus, dos negros, dos indígenas, das mulheres, das pessoas LGBTQIA+ e de tantas outras, e não deixar que outras histórias sejam soterradas.

Samara Hartt

Adora contar histórias, seja nas letras, seja no audiovisual, por isso se graduou em Cinema na UFSC e fez cursos de Escrita Criativa. Na literatura, é autora da novela epistolar “A Gaveta de Aurélia” e de dois contos da coletânea “Uma Casa Toda Nossa”, a qual organizou e que reúne textos de escritoras mulheres. No audiovisual, trabalha como roteirista da série “Medievália”, produtora do curta-metragem “Onde Era Mar” e diretora do curta “Efeito Dominó”, ambos em pré-produção. Como editora, atua no “Jornal Literário Tarrafa” e na revista “Além (da) Imagem”.

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