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Parada LGBT em Florianópolis, 2017.
Parada LGBT+ em Florianópolis, 2017.

Cultura LGBTQIA+ e as políticas públicas em Florianópolis

Corpos LGBTQIA+ ocupam diversos espaços com suas vivências dissidentes da norma heterocisgênera e na cultura encontram a possibilidade de existir enquanto ato de resistência. É esse um dos pilares para iniciarmos esse texto e traçarmos o caminho das políticas públicas para o setor na Ilha da Magia.

Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, foi por muito tempo apresentada para o mundo como capital gay-friendly do Brasil. Enquanto um pedacinho de terra perdido no mar, Floripa, como muitos conhecem, teve esse título marcado pelo setor do turismo devido ao grande fluxo de homens gays que buscavam na capital o agito das praias e o fervor das festas. Mas para pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneres, queers, interesexos, assexuais e outres) que vivenciam a cidade, residem, trabalham e pagam seus impostos, a realidade de acolhimento está longe de acontecer. Com altos números de lgbtfobia e resistência do poder público para lidar institucionalmente com essa realidade, Florianópolis está atrasada quando a pauta é o respeito à diversidade de sexualidades e gêneros.

A resistência cultural da comunidade LGBTQIA+ no Brasil é histórica. Não é de hoje que corpos LGBTQIA+ transformam cenários, agitam as políticas públicas, firmam acordos e marcam espaços. Desde o início do século, o teatro, o carnaval e outras festas populares, foram espaços de ocupação, seja nos bastidores, nos palcos ou ainda nas comissões de frente.

Durante a Ditadura Militar (1964-1985), um dos períodos mais críticos do Brasil, em meio a inúmeras perseguições, censuras, silenciamentos e desaparecimentos, os jornais Lampião da Esquina e ChanaComChana foram respostas críticas da comunidade LGBTQIA+ à repressão e tornaram-se marco do surgimento do movimento no país. Artistas transformistas também marcaram o período, agitando a vida noturna de capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, resistindo ao crescente cerceamento do regime militar nos becos e ruelas, nas casas noturnas e nos teatros, eternizando um período de ascensão de artistas da montação. Vide São Paulo em Hi-Fi (2013), de Lufe Steffen e Divinas Divas (2016), de Leandra Leal, totens do cinema queer brasileiro.

São Paulo em Hi-Fi (2013), Lufe Steffen
São Paulo em Hi-Fi (2013), Lufe Steffen

Conquistas históricas marcam a comunidade LGBTQIA+ brasileira. Uma delas, em 1985, foi a retirada do sufixo “ismo” da palavra homossexual(ismo), o qual designava doença. Essa ação foi construída através do Grupo Gay da Bahia – GGB, importante articulador até os dias de hoje, que bravamente resiste contra as violências institucionalizadas.

Diante deste acontecimento, outros direitos foram sendo conquistados, como ao casamento homoafetivo, adoção por casais LGBTQIA+, uso da expressão “orientação sexual” em vez de “opção sexual”, reconhecimento de união estável, autorização de procedimentos de redesignação sexual (1) pelo SUS, conquista do uso do nome social para pessoas trans e ações afirmativas em instituições públicas e privadas de ensino. No âmbito da Cultura, em 2014, durante o Governo Dilma, foi criado o “Comitê Técnico de Cultura LGBT+”, importante ferramenta  a nivel federal de combate à lgbtfobia e de promoção da cultura de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros e mais, que culminou em um relatório final importantíssimo para a construção de políticas públicas.

Ainda que este panorama seja algo a se comemorar, na prática não é difícil de encontrar relatos de pessoas LGBTQIA+ que tiveram seus direitos negligenciados por instâncias do poder público. Seja pela ignorância ou despreparo, as políticas públicas para a comunidade precisam cada vez mais serem resgatadas e relembradas, de modo a validar nossas existências enquanto sujeitos de direitos.

Com todo o percurso histórico que temos da comunidade, ao voltarmos os olhos para Florianópolis percebemos que ainda caminhamos a passos lentos. Estamos em uma cidade com potencial de ser referência em cultura do país, possuindo diversos aparelhos culturais como teatros, museus, cinemas, galerias, praças públicas, e também cursos de arte que são referências internacionais, mas esse título só será validado quando o poder público olhar para as pessoas fazedoras de cultura no município e ouvir suas necessidades.

Em 2017, ao fundarmos a BAPHO Cultural, produtora de cultura LGBTQIA+, encontramos um cenário que carecia da atenção do poder público. Nos editais municipais e estaduais não haviam categorias de Cultura LGBTQIA+, indutores afirmativos e cotas, além das pautas não acessarem o público.

Para nós, sobreviventes da cultura, os editais públicos tornaram-se aliados para gerar empregabilidade, formar plateia para a temática LGBTQIA+, preservar nosso fazer artístico e potencializar a difusão de nossa cultura, e é através destes que a BAPHO Cultural vem promovendo ações dissidentes da norma heterocisgênera

Um dos marcos significativos da produtora na cidade e no estado de Santa Catarina foi a criação, em parceria com a ADEH (Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque em Sexualidade), da Transforma – Festival de Cinema da Diversidade de Santa Catarina. O festival, que atualmente caminha para sua terceira edição, teve seu lançamento em 2018, construindo um importante espaço de difusão cinematográfica de filmes com a temática da diversidade sexual e de gênero, colocando Florianópolis no eixo de festivais nacionais com esse enfoque temático. Em sua primeira edição, com apenas um dia de programação, cerca de 200 pessoas foram atingidas. Já na segunda edição, com cinco dias de realização, o público estimado foi de 600 pessoas e movimentou cerca de 20 pessoas da equipe. Para esta terceira edição, mais de 200 filmes foram inscritos e a equipe conta com cerca de 50 pessoas, todas LGBTQIA+.

Tamanha é a importância do Festival que, além de ser um dos únicos ativos na região sul do Brasil, é também o responsável pela difusão de obras que muitas vezes não acessam os circuitos de festivais ou ainda as salas de cinema comerciais, como Tinta Bruta (2018) dir. Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, além de Bicha Travesty (2018), dir. Kiko Goifman e Cláudia Priscila. O evento possibilita que as narrativas alcancem novos públicos, formando uma plateia crítica que possa disseminar a valorização das vidas LGBTQIA+.

Pensando num espaço de debate acerca das políticas públicas, criamos em 2020 o Encontro Nacional de Festivais e Mostras de Cinema LGBTQIA+. Nosso intuito era fortalecer uma rede nacional entre os eventos da temática, de modo a construirmos com maior força as demandas do setor.

Com festivais e mostras de diferentes regiões do país, o primeiro encontro foi realizado em 28 de junho de 2020, no Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, e reuniu, além da Transforma, nomes como FOR RAINBOW – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero (Fortaleza-CE); Curta O Gênero (Fortaleza-CE); Sertão & Diversidade – Festival Internacional de Curtas (Quixadá-CE); RECIFEST – Festival de Cinema de Diversidade Sexual e de Gênero (Recife-PE); ModiveSE – Mostra da Diversidade Sexual de Campinas (SP); Festival Internacional de Cinema LGBTI de Brasília (DF) e MADRE – Mostra de Artes da Diversidade e Resistência (São José do Rio Preto – SP).

Atualmente, o Encontro está em sua terceira edição, fazendo parte das programações dos festivais e mostras de cinema LGBTQIA+ do país. Sua importância se dá pelo debate de políticas públicas que possam impulsionar o acesso ao cinema da diversidade sexual e de gênero, auxiliando na redução de violências e na qualidade de vida de toda população.

Para nós, fazedores e sobreviventes de cultura LGBTQIA+, ter as políticas públicas aliadas ao nosso existir enquanto agentes culturais é garantir que possamos colocar nossos trabalhos na rua sem sofrer qualquer tipo de censura pelos órgãos públicos ou, ainda, assegurar que possamos ser contemplados em editais pela qualidade de nossos trabalhos e pela importância de nossas obras.

Qualquer agente de cultura LGBTQIA+, ao acessar espaços institucionalizados, deve se despir dos medos e enfrentar as violências legitimadas contra as existências dissidentes da norma, pois por diversas vezes tivemos que modificar nossos projetos para que não sofressem intolerâncias lgbtfóbicas.

Portanto, nossa resistência não deve ficar só no âmbito da nossa existência e nosso fazer artístico, deve também estar dentro das organizações políticas legitimadas dentro do sistema que vivemos, seja no âmbito municipal, estadual ou federal. Por isso que, nós da BAPHO, juntamente com outras trabalhadoras da cultura LGBTQIA+ de Florianópolis, construímos uma moção de apoio apresentada na VIII Conferência Municipal de Cultura de Florianópolis, em 2019, buscando garantir o apoio das representações das Setoriais e do Conselho Municipal de Política Cultural para a criação do Fórum Setorial Permanente de Cultura LGBTQIA+ de Florianópolis.

Tivemos a aprovação unânime da moção, o que levou a iniciarmos os trabalhos para a construção da Setorial. Nossa motivação, frente a este projeto, era de assegurar plenamente que as políticas públicas relacionadas à cultura acolhessem as expressões artísticas construídas pela comunidade LGBTQIA+.

Produzimos cultura. Somos responsáveis pelo maior ato de resistência pública, a Parada do Orgulho LGBTQIA+, como a realizada em São Paulo desde 1997, que em sua última edição presencial, em 2019, recebeu mais de 3 milhões de pessoas, fortalecendo nossos direitos, movimentando o turismo, garantindo renda para milhares de trabalhadores e consolidando-se como a maior Parada da Diversidade do mundo.

23ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo. Foto Daniel Teixeira
23ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo. Foto Daniel Teixeira

Somos parte da cultura popular brasileira, movimentamos a indústria da música, do cinema, da literatura, do teatro, da moda e tantas outras. Mas a quem interessa a cultura LGBTQIA+?

Assim como a Festa do Divino, importante ação de cultura popular que movimenta inúmeras pessoas todos os anos, as Paradas do Orgulho LGBTQIA+ agem enquanto ação artística cultural garantindo a preservação da memória e da história da comunidade LGBTQIA+. Esse é um dos argumentos que utilizamos com frequência para legitimar a cultura LGBTQIA+ em Florianópolis. Mas, para além da Ilha da Magia, Santa Catarina abriga uma diversidade cultural pouco explorada ou reconhecida.

Os espaços legitimados na cultura catarinense, que aprendemos nas escolas e no convívio social, são influenciados pela colonização europeia e, portanto, apagam as culturas dissidentes, como as produzidas por pessoas LGBTQIA+, negros e negras, povos originários e quilombolas.

Como ato de subversão da norma cultural catarinense, em 2020, ocupamos o 3° Fórum Estadual de Conselhos Municipais de Cultura de Santa Catarina, que debateu a Lei Emergencial Aldir Blanc, já em cenário pandêmico ocasionado pelo Covid-19. Para nós, trabalhadores da cultura LGBTQIA+, que encontramos na arte um espaço de sobrevivência frente às dificuldades de acesso ao mercado de trabalho formal, seja pela lgbtfobia institucionalizada ou pelo desinteresse das empresas em ter nossos corpos em seus recintos, seria o momento perfeito para pleitearmos a inserção da categoria Cultura LGBTQIA+ nos editais emergenciais.

O resultado de nossa ocupação e fala frente aos trabalhadores da cultura catarinense foi a conquista, pela primeira vez na história de Santa Catarina, do reconhecimento em editais públicos da categoria Cultura LGBTQIA+. Assim como a Lei Aldir Blanc, que possibilitou a inúmeros agentes culturais saírem da fome, o edital catarinense #SCulturaemSuaCasa possibilitou o fazer artístico durante a pandemia, reconhecendo também a categoria de Cultura LGBTQIA+.Ambos editais emergenciais abriram espaço para que nós, trabalhadores LGBTQIA+ da cultura catarinense, pudéssemos exercer nossa arte livremente, formando plateia e disseminando pautas que assegurassem nossas vidas no país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo.

A conquista da inserção da categoria que de fato nos representa foi algo inédito no Estado. Foi em 2020 a primeira vez que nós LGBTQIA+ fomos reconhecidos enquanto fazedores de cultura.

Diante da necessidade de acessar outros editais de cultura para discutir, propor e construir políticas públicas, em fevereiro de 2021, o Fórum Setorial de Cultura LGBTQIA+ de Florianópolis foi oficialmente constituído. Com um mapeamento iniciado ainda em 2020, acessamos mais de 120 pessoas LGBTQIA+ trabalhadoras da cultura de diferentes áreas, da cultura popular ao cinema, apenas em Florianópolis. Tamanho alcance validou a importância e necessidade de ter a Setorial atuando na cidade.

No início de março de 2021, conquistamos bravamente uma cadeira no Conselho Municipal de Política Cultural, o que abriu a possibilidade para debatermos com outras representações da sociedade civil a importância da Cultura LGBTQIA+.

Agora, diante da calamidade que seguimos passando, as políticas públicas para a Cultura LGBTQIA+ serão aliadas na sobrevivência não apenas de nossos corpos, mas também de nossas histórias e do nosso fazer artístico. Que fazedores da Cultura LGBTQIA+ de diferentes regiões de Santa Catarina possam em coletivo ocupar novos espaços de construção das políticas públicas. Que nós, que por tanto tempo tivemos o direito de fala silenciado, nos façamos ser ouvidos  onde estivermos.

Os caminhos para a Cultura LGBTQIA+ em Florianópolis e no Estado estão sendo traçados. A partir de agora, temos o nosso espaço legitimado para existirmos, ocuparmos e, principalmente, fazermos aquilo que sempre fizemos, mas que não era reconhecido.  Somos agentes de transformação sócio-cultural.

A luta por uma maior abertura das políticas públicas que de fato representem a diversidade cultural, para além da cultura europeia, é todo dia. Nós estamos nos fortalecendo com as nossas, nas margens, nos guetos, nas ruas e nos espaços para os quais fomos empurradas.

A revolução também é LGBTQIA+.

 

 

[notas]

(1) A cirurgia de redesignação sexual consiste em um procedimento que altera as características genitais de nascimento da pessoa, para que assim seja relacionada com o gênero ao qual se identifica. Vale destacar que esse procedimento não é uma condição para validação dessa identidade de gênero.

Thomas Dadam e Arthur Gomes

Thomas Dadam e Arthur Gomes são agitadores culturais e agentes de cultura LGBTQIA+ em Florianópolis. Em 2017 fundam a produtora BAPHO Cultural, com o objetivo de gerar empregabilidade, abrir espaços e trazer visibilidade para as artes dissidentes. Através de suas trajetórias, perceberam a necessidade de mapear e debater políticas públicas para a cultura LGBTQIA+, fundando em 2021 o Fórum Setorial Permanente de Cultura LGBTQIA+ de Florianópolis, no mesmo ano em que recebem homenagem na Câmara de Vereadores da cidade pelo trabalho realizado através da cultura para combater as violências e preconceitos contra a comunidade LGBTQIA+.

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