Além (da) Imagem

Fazer cinema é um ato político
Protesto contra a extinção da Embrafilme no centro do Rio de Janeiro  (Foto de Luiz Pinto/Ag. O Globo)

Fazer cinema é um ato político

Se concordarmos com Aristóteles, quando diz que o homem é um animal político, fazer um filme, qual seja, é em si um ato político. Para o filósofo grego, e talvez poucos tenham pensado na acepção darwinista pré-Darwin (a de que somos animais), a política se dá na pólis (na cidade), mas penso que nasce em casa. A primeira impressão de um cidadão sobre a política, com todas as suas implicações éticas, está na família, no modo como seus membros se relacionam. A noção de ser e estar no espaço pequeno da casa, na construção do sujeito que depende do outro, ainda que pareça autossuficiente, se estabelece na compreensão das regras e do quando tais princípios a serem seguidos já não funcionam e devem ser repensados, porque o direito é também cria do seu tempo. No mais das vezes, o direito leva muitos anos para se adaptar às mudanças culturais e sociais no decorrer da história. E este tempo não tem a ver com a morosidade típica e muitas vezes necessária dos debates públicos, mas com as forças de resistência (os reacionários, quase sempre de uma elite que não suporta perder privilégios) e de vanguarda (geralmente nas áreas da cultura e das ciências humanas). Porém, estas áreas apenas percebem o que deve ser mudado, porque quem aciona e atua no tempo de mudar, criando suas demandas, é a própria sociedade. Política pública é direito, e cada vez mais setores da sociedade que sempre foram marginalizados percebem que podem exigir tais direitos. Por outro lado, os reacionários cada vez mais se armam com seus privilégios, narrativas destrambelhadas baseadas em pressupostos religiosos e falso moralista, e, quando se veem perdidos, porque  falta a eles o devido argumento, apelam para a violência física.

Fazer um filme é dar a ver, como diria o poeta João Cabral sobre a arte poética, notadamente a troca que o sujeito faz entre o que leva de casa para a rua e seu consequente retorno, sempre por intermédio da imagem e do som, seja em película, seja em pixels. Não à toa, o restinho que podemos chamar de democracia no Brasil vai se perdendo exatamente nesse intercâmbio, transformando o debate que deveria ser público (na pólis) em uma fofoca privada (no uatizap), mas que influencia não só o debate público, como também as políticas públicas.

A elite brasileira, de origem escravocrata, sempre usou os recursos públicos apenas para seu deleite. Para esta elite, qualquer desvio para outra função do Estado, que não seja a de proteger seu patrimônio e seus valores é condenável. Por isso é a favor de salários vergonhosos, condições de trabalho precárias, e contra auxílios fundamentais, tais como vale transporte, alimentação, bolsa família etc. Como se para transformar o país em uma república de iguais fosse preciso tirar do seu próprio patrimônio. A elite acredita, pela crença na meritocracia, que o patrimônio público é reservado apenas para si. Por isto, quando as forças de vanguarda propõem políticas públicas para as artes e à cultura, não faltam capitalistas raivosos dizendo que não se deve dar dinheiro público para vagabundos, no caso, os artistas. Porém, nenhuma construtora, banco, empresa de grande porte e amigos do poder conseguem ser empreendedores sem financiamento público. É por isso que eles berram quando se fala em políticas públicas para os outros, os que não são da elite, porque parece que dando aos outros vai faltar para si.

Fazer filmes, além de ser um ato político, demanda pesquisa, leitura, conhecimento de literatura, de sociologia, de psicologia, de antropologia e principalmente de linguagem. Mas para a elite, estas áreas do conhecimento humano não geram empregos e criam gente preguiçosa e, por sua vez, perigosa. A elite clama por democracia para os seus e miséria para os outros.

Há um equívoco grave no conceito de democracia, mais ainda quando aplicado por governos com tendências totalitárias, o de que os governos eleitos devem governar apenas para aqueles que o elegeram. Nada mais obtuso, porque a democracia só faz sentido quando a maioria protege a minoria, não o contrário.

Fazer cinema no Brasil é tarefa de uma minoria, de gente que escolheu fazer arte ao invés de ser profissional de uma área qualquer que possa ter rendimentos razoáveis para a sobrevivência prosaica. Não que não existam cineastas ricos, mas é uma minoria. O cinema, no entanto, mais do que arte, é também um modo de manifestação daquilo que o cineasta pensa em casa e quer compartilhar com a pólis. O cinema de um país, como dizia o poeta Ezra Pound em relação à poesia, é também um modo de representação da própria nação.

O argumento mais falacioso dos que são contrários às políticas públicas para as artes e à cultura é o de que só faz arte quem pode se virar por conta, e que não é o Estado que tem que financiar. Muitas vezes usam exemplos também falaciosos citando os Estados Unidos, porque supostamente lá não existem políticas públicas para as artes.

Os Estados Unidos da América não seriam nem de perto o que são, com sua força econômica, bélica e cultural, apesar de toda a crítica que possamos fazer ao modo belicoso de parte de seu povo, se não fosse pelo seu cinema. Mas lá, apesar do discurso tacanho do empreendedorismo e da cínica noção de que as coisas funcionam pela meritocracia, existem políticas públicas para o cinema, para o bem e para o mal. E por incrível que pareça, não são tão republicanas como as poucas políticas para o setor existentes no Brasil.

O cineasta José Padilha, numa entrevista para o Jô Soares, confirmou que o governo norte-americano faz aportes significativos de verbas para alguns filmes, desde que lhe agradem. Por isto eu realço que não é nada republicana essa relação, como a política dos editais existentes no Brasil e toda a legislação gestada nos governos anteriores, com a criação da Ancine e do Fundo Setorial do Audiovisual, e o apoio das empresas públicas aos editais de produção, de exibição e de festivais.

Outro dia, assisti Curtiz, do húngaro Tamás Yvan Topolánszky, baseado nas filmagens do clássico Casablanca, de Michel Curtiz. O filme mostra os bastidores das filmagens, revelando um irascível e grosseiro diretor. Mas o que importa não é isto, e sim o fato de que havia nas filmagens agentes do governo tentando controlar ou desvirtuar o roteiro, para que não elevasse o discurso político dos personagens. De algum modo, é também política pública e, neste caso, para o mal, porque não tem como premissa uma legislação que assegure igualdade na distribuição de recursos, muito menos isenção  política, duas premissas fundamentais para o bom funcionamento de uma política pública.

Também nos Estados Unidos, é mais do que sabida a intromissão violenta e nem dissimulada do senador Joseph McCarthy que, durante a guerra fria, fez uma lista de diretores, técnicos, atores e produtores acusando-os de comunistas, destruindo muitas carreiras no cinema e em outras áreas artísticas. Mais uma vez, uma política pública às avessas, mas ainda assim, era o Estado tentando controlar o pensamento e o debate público na pólis. Vejam que a narrativa de que os comunistas são o mal da democracia funciona até hoje, e, muitas vezes, vem junto no pacote das narrativas religiosas.

Por fim, um ato emblemático do quanto os governos norte-americanos defendem seu modo antirepublicano de fazer política pública para o setor aconteceu em uma das cerimônias de entrega do Oscar, quando a própria Michelle Obama anunciou o vencedor. O filme, chamado Argo, trata do conflito entre Estados Unidos e Irã. A aparição da primeira dama é uma baita de uma política pública para o filme. Cinema e poder lado a lado.

No Brasil, a primeira política pública para o setor aconteceu durante a ditadura, com a criação da Embrafilme. A ideia do regime era mostrar ao mundo que o Brasil fazia cinema brasileiro. O fato é que já se fazia bem antes da criação da estatal. Lembramos que a primeira fase do Cinema Novo teve seu auge de 1960 a 1964, antes do Golpe, portanto.

O cinema, assim como outras artes, tem como princípio básico a livre manifestação do pensamento e da linguagem. Por isto, toda política pública para o setor tem que ser de Estado, nunca de governo, porque em momentos de tensão política, como a que vivemos agora, as manifestações artísticas devem ser livres para dizer, nos temas e nas formas, porque os governos passam, mas a arte fica. Apenas com uma política de Estado, devidamente debatida, regulada e republicana isto pode acontecer, sem que os governos de plantão possam barrar estas manifestações.

Para tal, é preciso que a população compreenda os conceitos de governo e de Estado. Governo é a administração política, Estado é a administração institucional da coisa pública. Quem propõe políticas públicas é o governo eleito, mas precisa ter amparo na sociedade, no legislativo, no judiciário, para que possam ser protegidas por leis. Não faz sentido um governo ser eleito por uma elite desqualificada, do atraso (como descreveu Jessé de Souza) que manipula a parte mais frágil da sociedade por intermédio da imprensa graúda (sempre de olhos nas verbas dos governos, seja ele qual for), para emplacar políticas públicas apenas para a elite.

Não há democracia apenas com votos na urna, é necessário que as instituições protejam o Estado dos maus governos. Porém, no Brasil, isto não acontece, porque as elites querem o Estado apenas para eles, numa confusão semântica propositadamente engendrada, criando assim o inferno real para os outros, os pobres. Lembrar sempre que a pólis abriga ricos e pobres, ainda que a maioria das casas sejam habitadas por pobres. A real política não é aquela que pensa “ajudar” o pobre, mas sim aquela que propõe erradicar a pobreza. Para tanto, a principal política deve ser sempre a conquista da igualdade de renda.

As cláusulas pétreas da Constituição são as mais importantes políticas públicas que existem, porque protegem todos, maioria e minoria, mas muito mais as minorias, porque estas têm dificuldades imensas, entraves burocráticos, desentendimento de seus direitos, e se poderia aqui ainda fazer uma imensa taxonomia dos porquês. As outras, as impétreas, estão a todo instante, a cada mudança de governo, prontas para serem dissolvidas por caçadores de marajás ou pseudomitos.

Todas as vezes em que a extrema direita, ou mesmo a direita, assume o governo no país (em boa parte de seu período republicano), a primeira providência que toma é extinguir todas as políticas públicas para a cultura e para a arte. No passado, nem precisavam disso, porque sequer existiam tais políticas. Havia declarações de princípios constitucionais bem desenhadinhos, mas inócuos. Lembramos que declarações de princípios, ainda que constitucionais, é a mesma coisa que nota de repúdio. Princípios, quando não transformados em leis, não valem nada. Isso significa que as políticas públicas devem ser feitas para o Estado, nunca para os governos.

Os governos, até o fim da ditadura, faziam papel de mecenas para os seus. Bancavam com dinheiro público (do Estado) para apadrinhar artistas de sua preferência. Faço essa separação porque a arte está inserida na cultura, mas nem tudo o que é cultura é arte. É uma lástima que na opinião pública isso se confunda, do mesmo modo que se confunde governo com Estado. Mal temos política pública para a cultura, mas existe muito menos especificamente para as artes.

Uma política pública para o cinema deve ser pensada exclusivamente por meio de editais públicos, financiados por um fundo público, e este fundo deve ter gestão própria. Além do mais, deve ser pensada para projetos que não tenham medo do erro. Como disse o cara que descobriu o Brasil, Oswald de Andrade, a poesia é a contribuição milionária de todos os erros.

Digo isso porque mesmo nos projetos contemplados nos editais, percebe-se os arranjos para que se privilegiem os filmes que tenham algum tipo de apelo institucional, e são poucos os filmes ousados do ponto de vista da linguagem que se beneficiam, porque há pudor, seja por parte das regras burocratizantes, seja por conta de comissões julgadoras que privilegiam projetos com viés mercadológico.

É claro que há exceções, mas o grande problema está na origem da regra, aquela que diz o quanto deve custar um filme, e não o quanto o filme precisará de verba. Além, é claro, da ilegal retenção de imposto na fonte, que só em Santa Catarina é cobrada. Produtores e artistas devem debater mais estas questões e propor a criação de uma política pública para o setor que seja justa com todas as partes e enterrar de vez a ideia esdrúxula do mecenato, que é quando empresas colocam suas marcas nas obras com o dinheiro do Estado.

Ainda que com uma verba limitada e com pressões eternas sobre os prefeitos de plantão, que geralmente têm ódio de gente que pensa além da caixinha, e por isto tentam a cada ano não só reduzir as verbas, mas complicar e burocratizar a gestão, a melhor política pública criada até hoje para o setor foi o Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis, que financiou projetos que não têm medo do erro, uma revista, a Lado C, viabilizou pequenos cineclubes e tinha pronta ideias para propor espaços de difusão e de formação que, infelizmente acabaram, e deveria servir de exemplo para o Estado e, por que não, para o país.

Para que o exercício político de fazer filmes seja protegido pela sanha de uma minoria de elite, é fundamental que pensemos estas e outras questões. Como disse Cacá Diegues, ainda no século passado, o cinema é o último ritual do século. Eu diria que pode ser também o primeiro deste século, se compreendermos a grandeza política de sua feitura.

Fábio Brüggemann

Editor, escritor, roteirista e diretor. Tem publicado mais de dez livros, entre literatura, dramaturgia, ensaios e história, assim como já roteirizou e dirigiu outra dezena de filmes.

6 comentários em “Fazer cinema é um ato político”

    1. Luiz Carlos Lacerda

      Fábio, além de grande artista, é um intelectual brilhante e que pensa a Cultura e o Cinema com a clareza dos que conhecem o assunto em sua profundidade !
      Bravos !

  1. Luciana B. Tiscoski

    Texto lúcido e contundente para mantermos o foco, atenção redobrada e muito trabalho de resistência política pelo cinema, pela literatura, pela vida de quem escolheu fazer arte. Obrigada, Fábio.

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