Além (da) Imagem

Disobedience

Com quantos amores se faz um filme queer?

[introdução básica]

Para pensarmos as estruturas das relações de personagens lésbicas/bissexuais no cinema, precisamos descer alguns degraus e compreender o conceito de se rotular um filme como LGBTQI+ ou “Queer Film”. Do ponto do qual entendemos a lógica da classificação de produções LGBTQI+, adentramos nos estudos recentes de Queerbaiting¹. E, finalmente, mergulhamos nas camadas que dão vida a personagens e arcos narrativos em filmes protagonizados por personagens lésbicas/bissexuais.

nota da autora: vou me referenciar a personagens lésbicas e bissexuais como personagens lés-bi, a modo de que torne a leitura mais fluida, assim como filme LGBTQI+ usarei o termo filme queer.

 

[filme LGBTQI+ ou Queer Film]

Por definição, não há um consenso exato sobre o que seria um “Filme Queer”. Diferentemente de outros gêneros como o terror, que podemos classificar como um gênero cinematográfico que procura uma reação emocional negativa do espectador ao jogar com seus medos primários, e se caracteriza por sequências de cenas que o assustam, os filmes queers podem permear todos e quaisquer gêneros.

No livro Queer Cinema: The film reader, de Harry M. Benshoff e Sean Griffin, elaboram-se três critérios gerais para identificar produções queers: autores, formatos e recepção. De acordo com o critério autores, entenderíamos qualquer filme roteirizado ou dirigido por uma pessoa denominada LGBTQI+ como um filme queer. No quesito formatos, entraríamos na discussão da aesthetic queer, cujos critérios se encaixam no que popularmente é conhecido como design gay. De forma escrachada, podemos citar o chão de taco com a samambaia, ou calça com a barra dobrada e o famoso (e tão anos 90) anel de coco. Finalizando com o critério recepção, enquadraríamos aqui todos e quaisquer filmes que gerassem uma conversa e identificação com a comunidade LGBTQI+. Mas o cinema e os gêneros cinematográficos são fluidos e complexos, assim como a sexualidade humana.

Por isso, invocamos a fala de Helen Wright, coordenadora e cofundadora do Scottish Queer International Film Festival (SQIFF), que explicou filmes queers como: “Para mim, um filme é queer se de alguma forma contrariar ou desafiar a heterossexualidade”. Esse ‘desafiar a heterossexualidade’ foi explicado mais tarde como a representação de um personagem LGBTQI+ através de uma abordagem estilística que seja de alguma forma entendida como queer e se oponha à estética do filme hétero.

No quesito narrativa, não podemos sujeitar as definições de filme queer à explicação canônica e exagerada de que é qualquer filme no qual o enredo principal representa personagens LGBTQI+. Tratando-se da construção de arcos narrativos e de personagens não heterossexuais, precisamos de mais camadas, contextos, planos, ou seja, não basta ser um filme com personagens LGBTQI+ se são repetidos os clichês e estereótipos que todos já fomos habituados ao longo das últimas décadas.

Há uma crescente demanda para que as novas produções queer contem histórias positivas, que tenham finais felizes, que as personagens possam ter outras experiências para além da revelação de sua sexualidade, o relacionamento com a família, ou o amor proibido. Personagens LGBTQI+ estão prontos para contar outras histórias, onde o ponto central não é, necessariamente, a luta da comunidade.

 

[olá, clichê dos filmes queer]

Cena do filme “Portrait of a Lady on Fire” (Retrato de Uma Jovem em Chamas, Céline Sciamma, 2020)

Imagine Me and You, I Can’t Think Straight, Duck Butter, La Belle Saison, Happiest Season, Loving Annabelle, Ammonite, Carol, Tell It To The Bees, Hight Art, Kyss Mig, Portrait of a Lady on Fire, As Boas Maneiras, Como Esquecer, Room in Rome, Histórias de Amor Duram Apenas 90 minutos, Better Than Chocolate²… Filmes clássicos e sempre citados nas rodas de conversas de mulheres lés-bi, contudo, alguém constantemente lembra os clichês e histórias irreais ou escrachadas que acontecem com esses roteiros.

É diante desses conceitos estéticos, do que é necessário para tornar um filme queer, que precisamos trazer reflexões para os contextos de quando a obra foi produzida. Na década de 90 e no início dos anos 2000, tínhamos uma variedade limitada de filmes queer, e filmes como Imagine Me and You, I Can’t Think Straight e But I’m a Cheerleader³ confortaram e apresentaram possibilidades de novos amores e experiências para uma geração que não se identificava com os filmes de comédia romântica da sessão da tarde. Porém, quando falamos de produções mais recentes, como Carol, Ammonite, Disobedience, esperamos que as personagens não sejam um 2D e que não tenham apenas um check em uma lista de características para futuramente rotular o filme como queer. A essa altura de conquistas de direitos e com a influência que os filmes possuem sobre os  jovens e a sociedade como um todo, precisamos questionar as camadas dos arcos narrativos e desenvolver personagens mais complexos.

Não existe mais espaço para a estética dos filmes lés-bi que reforçam a visão heterocentrada da mulher fetiche ou da mulher masculinizada, da mulher que larga um homem para ficar com outra mulher, das cenas extensas – e muitas vezes desnecessárias – de sexo, da professora mais velha seduzindo ou sendo seduzida pela aluna… Queremos e precisamos ir além, nossas histórias possuem mais camadas que o romance e a luta constante para a manutenção dos nossos direitos.

Pode-se mostrar a velhice, como em DEUX⁴; discutir a condenação com pena de morte, como em My Days With Mercy⁵; ou apresentar o início das manifestações feministas na França dos anos 70, como em La Belle Saison. E sim, todos esses filmes ainda permeiam o amor-romance-relacionamento para mostrar as outras camadas das personagens. E a questão que fica é: por que precisamos dessa alegoria narrativa para sustentar um filme queer? Por que existe uma resistência em aceitarmos que filmes queer podem e devem ter outras possibilidades para além do filme romântico?

 

[fanfics e queerbaiting: quando não há representatividade, a gente inventa]

Cena da série “Xena: Warrior Princess” (Xena: a Princesa Guerreira, 6 temporadas, 1995)

Xena: Warrior Princess6 na década de 90,  Once Upon A Time7 entre 2011 e 2018, ou ainda o filme Ocean’s 88 têm algo em comum, algo muito perigoso e até prejudicial: queerbaiting. A expressão inglesa é cunhada pela junção de duas palavras, “queer” e “baiting”, que em tradução livre podemos entender como “isca para pessoas LGBTQI+”.

Com a ascensão da internet e de fóruns de discussão, o desenvolvimento de fanfics se tornou habitual entre fãs das mais diversas séries, filmes e até mesmo livros e videogames. Eles se reúnem para criar histórias paralelas às que os roteiristas e produtores apresentam nas telas, dessa forma surgem casais que não existem – de forma explícita. Enquanto fanfics protagonizadas por personagens héteros tendem a explorar outras narrativas, as fanfics protagonizadas por personagens não-heterossexuais, na sua maioria, envolvem relações amorosas. Um caso clássico é o relacionamento entre as personagens Regina (Rainha Má) e Emma Swan em Once Upon A Time. Elas nunca foram um casal oficial na série e, mesmo assim, ganharam por dois anos seguidos a enquete do site AfterEllen9, que premiava os casais mais queridos das séries.

As fanfics, por si só, não são prejudiciais ou problemáticas, filmes e séries despertam reações diversas no público e abrem novas possibilidades de discussões. O problema surge quando produtores ‘descobrem’ as fanfics e utilizam suas histórias paralelas para prender o público à série original, e, então, o roteiro e os arcos das personagens sofrem mudanças sutis e esse casal da fanfic ganha mais interações e tensões nas cenas, mas o relacionamento nunca é desenvolvido. E isso se tornou uma prática habitual nos grandes estúdios de Hollywood.

Dessa forma, entendemos o queerbaiting como: a tentativa percebida pelos criadores (normalmente de séries) de cortejar fãs LGBTQI+, mas sem a intenção de realmente mostrar uma relação LGBTQI+ sendo consumada na tela. Ou seja, é uma tática comercial fria e oportunista para explorar um determinado público, que podemos comparar com o pink money10. A dificuldade de entender a prática como negativa ou prejudicial se deve ao fato dos criadores explorarem um público que carece de representação de personagens LGBTQI+ de forma ampla. Diante dessa carência recorrente de personagens LGBTQI+ e histórias que dialoguem com as vivências reais da comunidade, aceitamos as migalhas que as produtoras deixam em suas produções.

Neste cenário que mistura a ausência de representatividade e a vontade de contar as próprias histórias, as fanfics repetem estereótipos e reforços – aqui, faremos um recorte específico para as personagens lés-bi, onde a personagem hétero é conquistada pela personagem lés-bi, clichê feminina x masculina, ou ainda as melhores amigas que descobrem juntas que não são só amigas. Recentemente, adolescentes descobriram o filme Thelma & Louise11, e várias fanfics surgiram dando finais alternativos à história delas. De forma semelhante, o filme Ocean’s 8 ganhou não só fanfics com as personagens de Lou (Cate Blanchett) e Debbie (Sandra Bullock), como também foram criadas fanfics com as próprias atrizes se relacionando.

 

[Disobedience e I Care a Lot: Grandes decepções ou estamos mal acostumadas?]

[Disobedience]

No final de semana de sua estreia nas cidades de Los Angeles e Nova York,  Estados Unidos, Disobedience arrecadou mais de 241 mil dólares, ocupando a quarta melhor média de estreia do ano até aquele momento – atrás de franquias da Marvel como: Avengers e Black Panther. A crítica rasgou elogios e notas respeitadas em sites como Rotten Tomatoes, IndieWire, Metacritic e IMDB, além do filme faturar 7,9 milhões de dólares ao redor do mundo e receber indicações para o British Independent Film Awards. Se Disobedience foi bem recepcionado pelos festivais e críticos, por que a comunidade LGBTQI+ tem comentários negativos sobre?

Disobedience foi vendido pelos portais de comunicação e mídia especializada em cinema/séries como um filme de amor proibido. O site jovempan.com.br¹ descreveu o filme como: “Um romance lésbico em uma cidade dominada por judeus ortodoxos”. Acontece que o filme – assim como o livro no qual foi baseado – apresenta outras múltiplas camadas para a história de Ronit (Rachel Weisz) e Esti (Rachel McAdams), e, de alguma forma, não fomos treinados para assistir personagens lés-bi em outras lutas que não as que partem da liberdade sexual.

A história apresenta três amigos nascidos e criados dentro das doutrinas do judaísmo ortodoxo. Enquanto Ronit, filha do rabino, quer ser livre e explorar o mundo para fora da comunidade restrita e limitada, Dovid e Esti aceitam suas vidas pacatas. Morando em Nova York e trabalhando como fotógrafa, Ronit se vê obrigada – e com vontade – de voltar a Londres para o enterro do seu pai, Krushka. Já em Londres, Ronit vai para a casa do seu amigo de adolescência Dovid, onde descobre que o mesmo se casou com Esti. E o circo foi armado.

Entre questões religiosas e familiares, Ronit tem sua confirmação de que o melhor que fez, apesar de todos os ônus, foi seguir sua liberdade para fora dos muros invisíveis que a aprisionavam. Enquanto Esti força uma falsa felicidade e distanciamento, Dovid procura compreender e entender os motivos da amiga explorar suas possibilidades. Durante os primeiros 45 minutos, o filme deixa pistas de um possível relacionamento entre as amigas, e induz o espectador a identificar Ronit como a personagem lésbica que quer ou pode destruir uma família, enquanto Esti entra no papel da esposa sendo seduzida por uma lésbica. Nos próximos diálogos e interações, esses papéis são rasgados, e começamos a ver as outras camadas que as personagens possuem.

Ronit, apesar de ter saído da comunidade judaica e ter vivido de forma livre em Nova York, nunca ficou com outras mulheres, a primeira e única até então foi Esti. No primeiro beijo do filme, quem toma iniciativa é Esti, e Ronit se preocupa com o casamento dela, com a vida que ela ainda leva presa dentro dos padrões judaicos. Nesse mesmo momento, Esti revela que quem ligou para avisar sobre a morte de Krushka foi ela e não Dovid, como Ronit pensava. Nesse momento, percebemos que Esti sempre foi apaixonada por Ronit, e que vê seu casamento como um acordo e obrigação. Esta era uma camada da personagem que não tínhamos acesso antes.

O diálogo que acontece é no tom de Ronit questionando porque Esti segue aquela vida, dando a impressão de que Esti sempre foi mais atrevida e ansiosa por liberdade. Ela responde que a vida foi acontecendo, e que gosta de algumas coisas daquela rotina limitada. Questionada, Ronit diz que não ficou com outras mulheres desde então, enquanto Esti confidencia que ainda gosta apenas de mulheres, e que o casamento era uma tentativa de mudar essa característica dela.

A partir dessas camadas reveladas, a narrativa ganha mais elementos, como Dovid saber desde antigamente que as duas amigas tiveram um caso. Fofocas sobre Ronit retornam com maior força, Esti descobre que está grávida, e existe uma expectativa de que Dovid seja duro e até mesmo violento em relação às duas, porém, ele acaba acolhendo os sonhos delas e respeitando quem sua esposa sempre foi.

Nesse momento, o filme passa de um clichê lésbico para um filme que extrapola as fronteiras do habitual relacionamento amoroso, e somos apresentados à liberdade e a aceitação, que têm significados diferentes para cada uma das personagens. Ronit não saiu de Londres porque não aceitava seu amor por Esti, Ronit não queria a vida simplória e restrita que a religião lhe impunha; para Ronit, os ensinamentos judaicos eram apenas palavras vazias que não faziam sentido ou tocavam sua fé. Já para Esti, a liberdade é poder ser ela mesma dentro da fé que ela escolheu seguir. Esti não quer deixar a comunidade judaica, não quer abandonar seu sonho de ser mãe, mas quer poder amar outras mulheres.

As personagens estão ligadas não pelo amor e desejos que sentem uma pela outra, mas pelo amor que desejam encontrar na liberdade. Outro ponto que quebra os conceitos é o diálogo entre Esti e Dovid na cozinha, quando ambos têm uma conversa sincera sobre seu casamento, sobre quem é Esti e os seus sentimentos. O filme ‘decepciona’ porque, quando Dovid dá a bênção para que ambas sejam felizes, elas não ficam juntas. Disobedience extrapola os padrões impostos na caixinha queer e clichês lés-bi porque fala com todas as letras que ninguém deveria ser obrigado a ser, ou fingir ser, o que não é. No fim das contas, nada é mais potente e difícil do que ser um “espírito livre”, parafraseando Nietzsche.

A relação de amor dilacerante que muitos veem em Ronit e Esti está mais para uma relação de amor e suporte para que ambas tenham força de serem o que elas querem ser, não para que tenham força para estarem juntas. Disobedience é um filme sobre as complexidades do abandono de uma comunidade. Diferente de outras narrativas, a história não é só preto no branco – como podemos observar até pela fotografia do filme, que explora tons de cinzas e marrons -, e somos convidados a compreender a importância de comunidades, seja para o bem ou para o mal, o seu papel essencial na vida de muitos, mas também venenoso na vida de tantos outros. Na vida real, o conforto familiar e do lar é sempre uma receita que contém pitadas de dor, mas no cinema, ainda mais no recorte queer, raramente vemos a representação de variedades de sabores, e acabamos nos viciando em abordagens onde a disfunção total ou a perfeição dominam. Nesse ponto, a narrativa explora o balanço desses ingredientes, não oferecendo conclusões fechadas ou vácuos mecanismos de apaziguamento. De forma a finalizar o conceito do filme, podemos identificar a vértebra central de Disobedience como a aceitação de ser o que se é: ainda que pautada pela sexualidade, é essa aceitação que dá sustentação ao amor entre as personagens, os questionamentos religiosos, os ônus e bônus das escolhas.

 

[I Care a Lot]

“I Care a Lot” (Eu Me Importo, J Blakeson, 2020)

Do outro lado, temos I Care a Lot (Eu Me Importo), lançado em 2020 como um drama cômico. A Netflix, ao comprar os direitos de exibição, apresenta a sinopse do filme da seguinte maneira: “Marla Grayson é uma renomada guardiã legal que gosta de ficar com pessoas idosas e ricas. Às custas da última, ela leva uma confortável vida de luxo. Quando ela pensa ter encontrado uma nova vítima perfeita, descobre que a mesma guarda segredos perigosos. Com base nisso, Marla vai ter que usar toda sua astúcia se quiser continuar viva.”12 Em nenhum momento, a comunicação publicitária do filme foi alusiva a uma relação lés-bi, isso só aconteceu quando o filme chegou nos sites e críticos, e o público começou a comemoração sobre o casal Marla (Rosamund Pike) e Fran (Eiza González). Nesse momento, o filme foi consagrado como queer.

Se Disobedience não gerava dúvidas sobre seu selo queer, por apresentar o relacionamento e desenvolver a liberdade de ser a partir desse ponto, I Care a Lot cria um complexo emaranhado de teorias e conceitos. O filme não tem em sua premissa a intenção de falar sobre relacionamentos ou relações amorosas, o palco está iluminado para falar de uma golpista que se dá mal ao escolher como sua vítima a matriarca de uma máfia russa. Por conta dessa estrutura onde o casal lés-bi é mera decoração para a história principal, o filme vem levantando discussões e desagradando os telespectadores que, de novo, estão habituados a acompanharem histórias e narrativas onde o plano central é o relacionamento.

Diferente de Disobedience, I Care a Lot não passou por festivais ou mostras queer, dando a entender que desde a sua concepção o filme não pretendia abordar e discutir diretamente questões relevantes da comunidade LGBTQI+.

I Care a Lot convida o telespectador a observar as personagens como “pessoas normais”, que têm outras demandas para além do amor e da luta. A maravilha da narrativa está na entrega de toda a confusão com a máfia, o relacionamento está ali quase como um suporte para mostrar o lado humano da vigarista Marla. Façamos a seguinte reflexão: se não alterássemos nada mais na história, somente a sexualidade de Marla, que agora teria um namorado, o filme teria alguma perda? Deixaríamos de entender alguma coisa ou perderíamos algum momento relevante e definitivo no filme que não faria sentido entre um casal heterossexual? Esse é o ponto. I Care a Lot não se propõe a ser um filme de discussão de gêneros, o mais próximo que chega é reforçar os estereótipos das mulheres que são fetichizadas em filmes heteronormativos.

É nas críticas negativas, ocasionadas pela falta de cenas e diálogos sobre o relacionamento amoroso, que mora a inteligência e relevância do filme para a comunidade LGBTQI+: personagens não heterossexuais podem e devem viver outros problemas, anseios, lutas, risos, experiências para além das ocasionadas pela sua sexualidade. I Care a Lot consegue com maestria entregar um filme que não limita os telespectadores à característica queer, assim como filmes de terror e super heróis têm no público-alvo especificidades maiores e mais relevantes que a orientação sexual.

De forma comparativa, temos em Disobedience uma estrutura contemporânea para contar uma história lés-bi. O filme propõe uma nova visão para os filmes queer e as variações possíveis dentro de diálogos, temáticas e camadas, ficando explícito que queer não deveria ser usado para definir um tema ou gênero cinematográfico, queer estaria mais próximo de um recurso de narrativa. Por sua vez, I Care a Lot apresenta uma estrutura clássica do drama cômico, mas traz como novidade a possibilidade de vermos personagens lés-bi vivendo fora das fronteiras que a bolha LGBTQI+ está acostumada a ter seus filmes entregues.

 

[om quantos amores se faz um filme queer?]

Com quantos quisermos.

Personagens LGBTQI+ sozinhos não fazem de um filme um filme queer e uma história clichê que reforça estereótipos não tem nada a agregar em nossa representatividade nas telas. São as pluralidades que desenvolvem camadas de conexão com as audiências, histórias que podem e devem ir para além das dores de ser LGBTQI+ ou de amores proibidos.  Afinal, eles podem amar a vida corrida de uma agência de atores (Dix pour Cent), as amigas, de uma forma não romântica (As Five), ou até mesmo não saberem lidar com o amor (Garota, Interrompida). Personagens plurais merecem histórias plurais.

 

 

[notas]

1 queerbaiting: neologismo surgido em meados de 2010 em fóruns de discussões de fanfics – histórias paralelas e ficcionais de grandes produções – para denominar séries, livros, filmes que apresentam um possível casal LGBTQI+, porém, não é desenvolvido esse relacionamento e/ou deixado de forma clara que são personagens não heterossexuais.

2 Chocolate: Imagine Me and You (Imagine eu e você, OI Paker, 2006), I Can’t Think Straight (Shamim Sarif, 2008), Duck Butter (Miguel Arteta, 2018), La Belle Saison (Um Belo Verão, Catherine Corsini, 2016), Happiest Season (Alguém Avisa?, Clea DuVall, 2020), Loving Annabelle  (Katherine Brooks, 2006), Ammonite (Francis Lee, 2020), Carol (Todd Haynes, 2015), Tell It To The Bees (Fale com as abelhas, Annabel Jankel, 2018), Hight Art (Promessas Sublimes, Lisa Cholodenko, 1998), Kyss Mig (Alexandra-Therese Keining, 2011), Portrait of a Lady on Fire (Retrato de Uma Jovem em Chamas, Céline Sciamma, 2020), As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017), Como Esquecer (Malu Martino, 2010), Room in Rome (Um quarto em Roma, Julio Medem, 2010), Histórias de Amor Duram Apenas 90 minutos (Paulo Halm, 2009), Better Than Chocolate (Melhor que Chocolate, Anne Wheeler, 1999).

3 But I’m a Cheerleader: (Nunca fui santa, Jamie Babbit, 2000)

4 Deux: (Duas, Filippo Meneghetti, 2020)

5 My Days With Mercy: (Meus Dias de Compaixão, Tali Shalom Ezer, 2019)

6 Xena: Warrior Princess: (Xena: a Princesa Guerreira, 6 temporadas, 1995)

7 Once Upon A Time: (7 temporadas, 2011)

8 Ocean’s 8: (Oito Mulheres e Um Segredo, Gary Ross, 2018)

9 AfterEllen: https://afterellen.com/ – site americano de cultura queer e lésbica

10 Pink Money: é o termo usado para caracterizar a comercialização de produtos e serviços específicos para o público LGBT+; ou seja, é uma parte do capitalismo movimentada pelo consumo LGBT+, que representa mais de três trilhões de dólares ao redor do mundo.

11 Thelma & Louise: (Ridley Scott, 1991)

12 sinopse: acessado dia 09 de maio de 2021, https://g.co/kgs/9ra8sT

Paula Chiodo

Publicitária, escritora e, atualmente, estuda Arcos Narrativos de Personagens Lésbicas e Bissexuais, no programa Postgraduate – MA Screenwriting, como convidada na London Film Academy. Está em pré-produção do seu primeiro curta-metragem como diretora e roteirista.

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