Além (da) Imagem

A sobrevivência dos vaga-lumes em “A árvore de alfajor” (1), de Marcela Soares

Enquanto Marcela coloca a sua personagem deitada na grama, sozinha em uma floresta inabitada, nós estamos aqui, também isolados, em nossas casas. A noite chega e a moça ganha a companhia de pequenos seres, são vaga-lumes, que trazem sua frágil luz para onde há escuridão, e eu me lembro da luz do celular, que, nesses tempos, me fez mais próxima dos familiares e amigos distantes.

Ao mesmo tempo que o fascismo em nosso país permite a morte de milhares de seres humanos — e às vezes a incentiva —, a sombra encontra a moça em sua solidão. A moça, que a partir de agora chamarei de Marcela, fica tão assustada com aquele espectro que foge sem perceber os vaga-lumes ali, acompanhando sua trajetória.

Depois de muito correr, Marcela encontra um abrigo e, como nós, enfeita sua casa, faz yoga, lava a roupa. Faz uma fogueira e comemora a luz que encontrou em si, na sua persistência, afinal, todos somos vaga-lumes. Lembro-me de Georges Didi-Huberman falando de Pasolini:

Ora, toda a obra literária, cinematográfica e até mesmo política de Pasolini parece de fato atravessada por tais momentos de exceção em que os seres humanos se tornam vaga-lumes – seres luminescentes, dançantes, erráticos, intocáveis e resistentes enquanto tais – sob nosso olhar maravilhado. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.22-23)

São momentos de exceção, quando encontramos alegrias, apesar das mortes nos noticiários e telefonemas, quando alimentamos nossa fogueira interna, que aquece e ilumina, mesmo com a sombra do fascismo lá fora; “a dança dos vaga-lumes, esse momento de graça que resiste ao mundo do terror, é o que existe de mais fugaz, de mais frágil” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.25), são curtas-metragens no meio dessa série de anos pandêmicos. Entretanto, a luz do projetor ao fundo eventualmente se apaga e a sombra volta a cochichar no nosso ouvido, assustando-nos, então voltamos a correr e fugir da assombração, perdendo-nos na escuridão, assim como Marcela.

Primeiro, desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.45)

É preciso procurar os vaga-lumes, pois eles não desapareceram. Nós usamos as fracas luzes dos celulares para nos conectar com aqueles contrários à sombra, saímos de nosso abrigo para gritar “ele não”; e Marcela encontra uma esperança, um único e sobrevivente vaga-lume, que, mesmo com sua luz frágil, a guia para um caminho não percorrido antes. O vaga-lume a leva para o inesperado, para algo que somente a ficção é capaz de criar: a árvore de alfajor.

O alfajor de Marcela me lembra da madeleine de Marcel (2), uma memória gustativa que lhe permite contar histórias e criar personagens. A árvore de alfajor, esta planta extraordinária que abriga uma constelação de vaga-lumes, é também a força que Marcela buscava para enfrentar a sombra.

Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes, rigorosamente falando, uma tal constelação? Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo dos vaga-lumes é afirmar que em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.60-61)

A única saída para o fascismo, esse espectro que nos assombra, é a imaginação, é a capacidade de enxergar a sobrevivência dos vaga-lumes apesar de tudo, é a possibilidade, por que não, de encontrar aqui e ali, árvores de alfajores nas luzes projetadas das salas de cinema.

 

[notas]

(1) O filme passará na Mostra de curtas do FAM (Festival Internacional de Cinema Florianópolis Audiovisual Mercosul) no dia 24/09 às 18h15.

(2) Referência ao livro “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust

 

[bibliografia]

DIDIHUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Trad. de CASA NOVA, Vera e ARBEX, Márcia. In Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

Samara Hartt

Adora contar histórias, seja nas letras, seja no audiovisual, por isso se graduou em Cinema na UFSC e fez cursos de Escrita Criativa. Na literatura, é autora da novela epistolar “A Gaveta de Aurélia” e de dois contos da coletânea “Uma Casa Toda Nossa”, a qual organizou e que reúne textos de escritoras mulheres. No audiovisual, trabalha como roteirista da série “Medievália”, produtora do curta-metragem “Onde Era Mar” e diretora do curta “Efeito Dominó”, ambos em pré-produção. Como editora, atua no “Jornal Literário Tarrafa” e na revista “Além (da) Imagem”.

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