Além (da) Imagem

BRAVOS VALENTES, vaqueiros do Brasil

Marcia Paraiso – pesquisa, roteiro, produção

Quando se nasce no litoral, se pensa o litoral como uma referência de lugar. Quando se tem como ponto de partida a cidade do Rio de Janeiro, são muitos os elementos que te referenciam e que parecem se bastar pela multiplicidade que uma única cidade pode ter: como pode, em um lugar só, ter praia, morro, baixada, floresta, samba, futebol, carnaval? É muito por isso que o povo carioca tem esse enraizamento, essa dificuldade de migrar e esse sentimento entranhado de que estar ali se basta.

Pensando assim, me apresento como alguém fora dessa lógica de pertencimento a um lugar. Talvez o agravante esteja no fato de eu carregar os múltiplos lugares de origem da família — Minas, Bahia, Mato Grosso, Ceará — e de ter crescido nas longas viagens de carro com meu pai, as que mais me marcaram, aquelas no Corcel 78 de cor branca, com a capota preta. Cruzávamos o sentido contrário do litoral, íamos rasgando interiores. “Olha só, tanta terra sem fim e tanta gente sem terra” (repetia ele). Eu não me dava conta ainda do tanto que aquela ida adentro me fascinava. O sertão, lugar onde o poder público pouco dá as caras. Onde os conflitos se resolvem com outros poderes.

Fui conhecer o sertão, no sentido que dá a ele, na confluência do que é o semiárido brasileiro, no final dos anos 80. Eu era uma jovem, viajando sozinha num ônibus da extinta viação São Geraldo, depois de juntar um dinheirinho em trabalhos pingados. O que me chamou a atenção no sertão de Caicó, o meu primeiro sertão, no Rio Grande do Norte, terra do meu professor Moacy Cirne e seu “Chico Doido de Caicó”, foram, à primeira vista, os sertanejos, o céu imenso sobre a minha cabeça, o som do arrulhar das rolinhas picuí e o chocalhar dos sinos pendurados nos animais. Depois, foram os jumentos, esparramados pelas estradas e muitas vezes deitados no meio das vias.

Desta primeira impressão, me veio a frase “o sertanejo é, antes de tudo, um forte.” O tempo passando e Guimarães Rosa, que até então eu achava de tão difícil leitura, passou a ser companhia com seus sertões e veredas, porque “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera”.

Já no século 21, duas filhas paridas, fui me tornando mais o que sou. O destino, o esforço e resiliência, e os anos de democracia e de políticas públicas para o audiovisual me fizeram chegar onde estou: conseguir viver do audiovisual. Os sertões, inclusive os sertões do sul, com seus sertanejos daqui, passaram a ser, a cada dia, mais e mais interessantes pra mim, trazendo o tema para recortar em filmes, multiplicando o meu olhar com outros, compartilhando tantas histórias.

“Bravos Valentes, vaqueiros do Brasil”, filme não ficção longa-metragem em que atuei na produção, na pesquisa, no roteiro, que tem a direção do sempre parceiro Ralf Tambke, foi um longo trabalho de investigação e mergulho em um universo tão distante e desconhecido da maioria dos brasileiros que vai ao cinema. Depois da experiência com “Vaqueiros Encantados”, filme etnográfico contemplado no edital Etnodoc — do tempo em que tínhamos Ministério da Cultura e uma Secretaria do Audiovisual pulsante — realizado na Ilha do Marajó, acompanhando a relação dos vaqueiros marajoaras com a religiosidade e a pajelança, queríamos mais. Tanto eu quanto Ralf saímos do processo de realização do filme com o desejo de ir além, de dar visibilidade ao ofício do vaqueiro, uma das primeiras profissões do país, que vem desde a Colônia e que está presente em todas as regiões brasileiras.

Sobre a estética fílmica, deixo o espaço para que o diretor, e também diretor de fotografia, transcorra sobre suas opções. Mas da minha parte, acredito que a minha grande contribuição ao filme foi, tal qual no cinema de ficção que carrega o desafio da escalação de um elenco, aqueles que vão vestir os personagens, a tarefa de encontrar quem seriam os 4 personagens reais que, acompanhando suas rotinas, fariam com o que o espectador compreendesse aquela lida, a relação com os bichos, com o tempo, com os lugares. E pra chegar nesses personagens o percurso é árduo, longo e requer paciência e persistência.

Subvertendo a imagem que se constituiu na figura representativa do vaqueiro sertanejo nordestino, encourado, aquela criatura máscula, plena em valentia e masculinidade, a escolha de abrirmos o filme com Maria Eduarda rompe com a tradição. Uma vaqueira, uma mulher do sertão, carregando em si a ruptura de uma trajetória reservada para a mulher: a do espaço doméstico, da cozinha pro quarto. Estudante do Instituto Federal do Crato, vaqueira como o pai, os irmãos e os avôs, aos 24 anos, ela é o que quer e luta para ser.

No Mato Grosso do Sul, Adelino traz nos traços, na pouca fala, no conhecimento das plantas medicinais, a origem dos donos daquela terra, os Guaicurus, os indígenas cavaleiros. A partir do registro de uma doma, a relação de Adelino com o cavalo se estabelece numa comunicação, numa parceria em que ambos os lados são o que são, sem hierarquia, sem domínio pela violência ou uso da força, singularizando essa figura do pantaneiro, formada por muitos indivíduos únicos, habitando aquele imenso território do Pantanal.

O arquipélago do Marajó e o grande desafio de se mostrar a lida do vaqueiro marajoara. Diferente do pantaneiro, o marajoara se apresenta no coletivo, se traduz em muitas vozes que repercutem um discurso que se repete, na forma e no conteúdo. A forma é doce, é mansa, acalma, nos traz paz. No texto, herdaram dos pais e dos antepassados o gosto pelo ofício de estar no campo, nas extremas distintas estações — chuvas intensas e secas — à frente dos rebanhos de búfalos marajoaras. Homens que são uma extensão daquele lugar, um ambiente que exige bravura.

E quando o Brasil é quase Uruguai, nos pampas gaúchos, nos campos dobrados de Palmas, no Alto Camaquã, entre cânions, riachos e baixíssimas temperaturas, a tradução do gaúcho na pele, na voz e no laço de seu Afonso Manoel. “Eu sou a tradição”, ele diz, emocionado. Para o antropólogo Darcy Ribeiro, os gaúchos dos pampas “surgem da transfiguração étnica das populações mestiças de varões espanhóis e lusitanos com mulheres guarani”. Uma ideia bem diferente da imagem que os brasileiros têm do povo do Rio Grande do Sul, geralmente relacionada à uma ancestralidade açoriana, alemã ou italiana.

Pampa, palavra indígena, de origem Quéchua, cuja influência chegou até o Rio da Prata, palavra feminina que quer dizer planície, área extensa, lugar sem limites. Ali, resistindo naquela terra ameaçada pela mineração, pela soja e milho transgênicos, pelo arroz, pelo uso de venenos (que pra ficar menos compreensível, combinaram nomear de agrotóxicos), pela introdução de espécies exóticas como o javali ou o capim-annoni, como se estivéssemos em Pasárgada, vive uma população que se dedica, tal qual seus bisavós e avós, à pecuária e agricultura familiar. Ou seja, vivem dos bichos e plantas que cuidam com toda a dedicação, como parte de si.

Ser pecuarista familiar é um modo de ser, de viver, de olhar em volta, de valorizar aquele campo nativo como um presente divino que, como tal, precisa ser preservado pra se manter assim para o desfrute das próximas gerações. Camperear é o verbo que traduz um modo de vida tradicional que interliga gente, cães, rebanhos, plantas, numa permanente e constante inter-relação de sustentabilidade, que envolve também o sentido do afeto, traduzido nas falas dos campeiros Beto e Afonso.

No desafio de se fazer um filme à altura de suas trajetórias, de suas histórias e de todo o passado ancestral trazido junto com suas falas e atos, o roteiro foi se desenhando entre a paisagem e verso, na fala que remete ao cancioneiro popular, na poesia colocada na voz de Lirinha — José Paes de Lira — que verbaliza textos de autores que se debruçaram pra falar de vaqueiros, bois e cavalos, com um olhar de deslumbramento, quase invejosos na vontade de ser um deles. Junto a Guimarães Rosa e seu mundo melhor habitado por cavalos, soma-se Luiz da Câmara Cascudo, Eurico Alves Boaventura, Washington Queiroz e eu mesma, ali em meio a tantos fortes nomes, tentando me colocar como mais uma que, quisera eu, pudesse ter tido a chance de olhar de dentro, de carregar a bravura e valentia desses nossos vaqueiros brasileiros.

 

Ralf Tambke – direção e direção de fotografia

Da ideia ao filme finalizado, passamos por muitos desafios. Uma vez escolhidas as regiões, Amazônia, Caatinga, Pantanal e Pampas, como apresentaríamos a rotina da profissão sem uma repetição enfadonha, ou mesmo didática, para o espectador?

Esta atividade provavelmente foi uma das primeiras atividades reservadas ao homem-livre no Brasil marcado pela escravidão. O vaqueiro, pantaneiro, marajoara ou campeiro, ordenham, recolhem o rebanho no campo, contabilizam, marcam, vacinam, controlam doenças ou separam o gado. A rotina é sempre a mesma, mas não há um dia igual ao outro, como não há um sertanejo igual ao outro. No entanto, eles têm em comum a capacidade de compreender as forças da natureza, os sinais que garantem sua sobrevivência — são todos Bravos Valentes.

Em suas rotinas, cada um carrega não somente sua história individual, mas também a história local, a cultura e as tradições regionais. Através da estetização buscamos dar tempo ao espectador para reconhecer as diferenças, nos detalhes que vemos através das lentes macro, de close ups, da distensão do tempo da câmera-lenta.

Enquanto a imagem mostra a rotina, é na voz de cada personagem que estão presentes, de forma autêntica, suas vivências, sonhos e expectativas pessoais. Eles têm falas fortes a respeito de conflitos, como a vida na cidade ou no campo, o agronegócio e a pecuária familiar, o futuro da profissão ou, ainda, o acesso à educação formal e às tecnologias, a resiliência e a tradição. A voz de cada personagem está presente no filme sem a redundância da imagem, e, enquanto as escutamos, podemos facilmente assistir o que nos é mostrado e imaginar aquelas personagens falando conosco. Este é o meu desejo com um filme: permitir ao espectador imaginar, fazer conexões e perceber detalhes.

Conseguir a espontaneidade dos personagens e, ao mesmo tempo, alcançar tecnicamente a beleza daquela realidade documental foi também um grande desafio. É comum as demandas técnico-estéticas imporem às personagens situações que ameaçam a naturalidade das ações. A repetição ou o posicionamento diante à câmera impostos pela técnica cinematográfica definitivamente não são aliadas da espontaneidade, sobretudo quando tratamos com não-atores. Isto nos obrigou a algumas escolhas: trabalhar principalmente com a luz natural, a equipe jamais ser maior que 5 pessoas e todos estarem completamente à vontade, deixando as personagens livres para interagir, criando, assim, um ambiente de confiança mútua. Escolhas, como trabalhar com luz natural, criam limitações, tal como os horários de filmagem, deveríamos obedecer o nascer e o pôr-do-sol e nos horários em que a luz natural não era favorável, simplesmente descansamos, foi preciso respeitar o tempo.

Realizar um documentário significa estar sempre de olhos e ouvidos abertos, estar disposto a trocas. Não se trata de criar uma personagem, mas de escolher personagens que tragam significado ao filme. Eu imaginava uma personagem feminina, uma vaqueira, e a encontramos! É muito forte assistir àquela mulher vestindo a “armadura de couro”, necessária ao trabalho árduo e arriscado na caatinga, e ainda mais impressionante quando ela própria explica o que significa ser vaqueira: “é muito mais que entrar no mato, derrubar o boi…”. Precisávamos também de uma doma, de um vaqueiro que se comunicasse com o seu cavalo, e encontramos Adelino, um pantaneiro que nos lembra os guerreiros Guaycurus que ainda no século XVI dominavam a montaria introduzida naquele bioma pela invasão espanhola. Também era nosso objetivo abordar a atividade tradicional na ilha do Marajó, região Amazônica onde o gado também foi introduzido para demarcar território como no restante do país, mas ali a atividade é exercida sempre por um grande número de vaqueiros marajoaras, o que caracteriza uma região de grandes extensões de terra e um manejo com farta mão-de-obra desvalorizada, embora sejam estes Marajoaras os responsáveis pela riqueza cultural da região. Finalmente, é obrigatório filmar na região onde mencioná-la já é suficiente para que todos imaginem os cavaleiros, a bombacha, o chimarrão: os Pampas. Ali encontramos a própria tradição, onde o bovino se multiplicou rapidamente, teve suas carcaças abandonadas nuas, sem o couro, utilizado para alimentar o ciclo do couro europeu do século XVI, levando os povos cavaleiros Charruas a estabelecer o alicerce do povo que se denomina “gaúcho”.

Realizar o “Bravos Valentes – vaqueiros do Brasil” significa para mim uma investigação da formação do povo brasileiro, da criação dos limites e da ocupação territorial desigual, onde aqueles que antes viviam livres na terra transformaram-se em Bravos Valentes, em vaqueiros brasileiros, para manter sua liberdade.

 

[notas]

“Bravos Valentes – Vaqueiros do Brasil” estreia nas salas do Espaço Itaú de Cinema – Botafogo (RJ) e Frei Caneca (SP) dia 30 de setembro. A estreia na Globoplay é no dia 30 de novembro.

Marcia Paraiso e Ralf Tambke

Marcia Paraiso é documentarista, roteirista e diretora, atuando há 25 anos no audiovisual. Dirigiu o longa de ficção Lua em Sagitário – vencedor do prêmio Ibermedia e realizado em coprodução com a Argentina. Co-dirigiu a série Submersos – coprodução Paramount Channel Brasil (13 episódios, 1 hora) – também uma coprodução com a Argentina, e os longas documentários Terra Cabocla (2015), A maravilha do século (2019) e Sobre sonhos e liberdade (2020 – uma coprodução com Portugal). Foi também diretora das séries Invenções da Alma (Canal Arte 1) e Visceral Brasil, as veias abertas da música (TVs públicas e Canal Curta).

Ralf Tambke é formado em cinema na UFF – Universidade Federal Fluminense, com especialização em dramaturgia pela HFF de Munique, Alemanha. Fundou a Plural Filmes, onde atua como produtor executivo e diretor de fotografia em muitos projetos. Seu primeiro filme, o curta O Matrimônio, foi uma coprodução com a ZDF da Alemanha. Produziu a série Submersos (Paramount Channel Brasil), o longa Lua em Sagitário (Brasil-Argentina) e o longa On the Road (J.VIelsmeier/Alemanha), entre outros trabalhos.

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