Além (da) Imagem

Concept do curta-metragem NonnaNonna

“Nonna”, as transfigurações e as ressignificações dos tempos

Quais as possibilidades que o fazer fílmico tem para reverberar em si e no mundo todas as vozes e compleições que possui?

Em 2015, a gaúcha Anne Salles se viu impulsionada a escrever um argumento de ficção em que o propósito era dar ressonância à intensa, sensível e mágica relação entre ela e a avó, cuja descendência era italiana. Estes fragmentos de memórias da infância, ambientados na realidade de uma pequena comunidade rural da cidade de Vila Flores, no Rio Grande do Sul, entrelaçados com muito afeto e acolhimento, geraram, mesmo que ainda despretensiosamente, as primeiras partículas do projeto de curta-metragem que, em meados de 2018, confirmaria-se como Nonna.

Enquanto Anne, acompanhada de algumas parcerias, buscava alinhavar novos tratamentos da sua história, a Novelo Filmes, uma produtora de cinema de Florianópolis, seguia construindo seu espaço no meio audiovisual.

Apesar das ações em paralelo, as energias confluíam para que, então, através de uma plataforma que uniu mais de 50 Mulheres do Audiovisual Catarinense, a elaSCine, a roteirista tivesse acesso ao e-mail de Ana Paula Mendes, sócia e produtora executiva da Novelo. Ainda sem ter contato direto com as mulheres da produtora e munida de uma valiosa admiração, em maio de 2018, Anne envia seu roteiro com a intenção de pedir apenas um feedback. Ana Paula identifica na história um potencial muito grande de realização e competição no Prêmio Catarinense de Cinema, e, a partir daí, propôs à Anne o prazo de um ano para desenvolver o projeto. Em setembro daquele ano, o projeto estava contemplado no edital estadual, com proposta de direção da sócia da Novelo, Maria Augusta V. Nunes. Ativa-se, então, uma relação profissional com trocas muito poderosas.

Ao adentrar o novo ano e percebendo alguns contextos políticos juntamente das demais sócias, Maria sugere algo bastante catalisador à narrativa: abordar o tamanho do impacto do uso de agrotóxicos nos contextos rurais.

“Originalmente era um drama que abordava no live-action de forma muito sensível o afeto profundo e resistente ao tempo entre um neto e sua avó que viviam no campo. O projeto ganhou uma nova roupagem após alguns eventos políticos emblemáticos ocorridos no Brasil em 2019 – notadamente, o recorde histórico no número de agrotóxicos registrados no país (448 registros) desde 2005, quando se passou a acompanhar esses números. Nos demos conta que o espaço onde as personagens transitavam – uma pequena comunidade rural, que vive da agricultura familiar – talvez não resistiria aos avanços agressivos das produções agrícolas em larga escala e da sistemática liberação de novos agrotóxicos pelo governo de Bolsonaro. Por isso, decidimos incluir essa questão no filme para lhe conferir uma atualidade e um teor político que, em nossa opinião, potencializariam o projeto. Assim, a história que já se dividia em dois momentos, passado e futuro, seria também marcada por uma diferença estética desses dois momentos que mostrasse a toxicidade da vegetação no local onde as personagens viviam, trazendo um tom fantástico para o filme. Esse universo de um futuro devastado precisava ser construído, o que seria uma tarefa bastante complexa de transformação das locações.”

(Relato de Maria Augusta V. Nunes para a revista)

Maria Augusta, Diretora (Créditos: Cíntia Domit Bittar)
Maria Augusta, Diretora (Créditos: Cíntia Domit Bittar)

2019, então, é o ano em que se iniciam várias pesquisas da produção executiva sobre como viabilizar o projeto, principalmente por considerar que a história se ambienta em uma região interiorana. Havia a necessidade de deslocamentos de toda a equipe e o elenco, hospedagens, alimentação, entre outros detalhes financeiros relevantes.

A pré-produção começa efetivamente em janeiro de 2020. Apesar de haver alguns desafios, como a busca pelo local e pela casa perfeitos para dar vazão às transformações que a narrativa exigia, tudo corria conforme o esperado. A direção de arte, conduzida ousada e minuciosamente por Dicezar Leandro, já fazia seus primeiros passos conceituais, criando vários elementos caracterizados, como uma mini-torre com caixa d’água, e sugerindo ideias para a sustentação da paleta de cores, das texturas e camadas dos cenários, procurando trazer os efeitos irreversíveis que a toxicidade dos agrotóxicos causaria no transcorrer do tempo para este segundo momento diegético. Outro processo que já se desenrolava era a escolha das atrizes. A maior parte do elenco já tinha sido definida: Nenê Borges faria a Nonna; Nina Menezes Martins, a Ana criança; Adriane Canan, a Agricultora; e Marina Veshagem, a Ana adulta.

Nada atípico e consideravelmente problemático acontecia na pré-produção de Nonna até que, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declara a Pandemia da COVID-19. As notícias que vinham da Europa eram das mais aterrorizadoras. Pessoas, principalmente idosas, sucumbiam sem ar. Nos hospitais, o tempo e o oxigênio nunca foram tão caros. Milhares de famílias são privadas de despedidas. Comboios fúnebres em caminhões militares lotados de corpos humanos se direcionam para zonas afastadas dos centros urbanos de países como a Itália. O Brasil e o mundo congelam. Boa parte do nosso país, que já estava demasiado frustrada politicamente, se vê em sua totalidade desamparada: não há um governante decente, coeso, mentalmente saudável e realmente preocupado com o povo. Pelo contrário, o Brasil se percebe dentro de um sistema de descontrole, exasperação, onde uma família de genocidas parece brincar de apostar entre si sobre quantos brasileiros irão morrer e quanto tempo isso irá durar. O ministério da saúde tenta fazer o mínimo em meio a tanta bagunça. Ninguém sabe direito como proceder, o que fazer, como orientar, como não se contaminar. Falsas verdades ganham mais força e se tornam verdades líquidas e convenientes. Alguns governadores começam a determinar os primeiros comandos. Pouquíssimos dias depois, as medidas restritivas e emergenciais começam a ser aplicadas por vários estados brasileiros. Santa Catarina é um dos primeiros. Pânico instaurado em vários setores. Saúde, economia, comércio, entretenimento, boa parte precisa parar suas atividades sem um prazo definido para a retomada. Aglomerações são proibidas. E, por questões de segurança e qualidade de saúde, as produções audiovisuais são suspensas por tempo indeterminado e, inevitavelmente, Nonna acaba sofrendo este impacto.

Passados três meses, a situação da saúde no país só se deteriora. Alguns protocolos de trabalho visando a prevenção à COVID-19 são criados. A Novelo começa a avaliar os custos para voltar com a pré e a produção nestas condições. Ao concluir, percebe que é inviável financeiramente e que não há uma perspectiva palpável de retorno com garantia de preservação da saúde de toda a equipe e o elenco. Então, depois de analisar a viabilidade da execução do projeto, as perspectivas e a conjuntura do momento, a produtora Ana Paula propõe às sócias e à Anne algo singular e aparentemente bastante enredado: transfigurar a narrativa de Nonna do formato live-action para o de animação em 2D.

“Mudar para animação foi uma saída muito inteligente e benéfica para o projeto. Foi um aprendizado para todas, uma alternativa legal para um problema real. Se o filme se mantivesse em live-action, não saberíamos quando seria produzido, gravado. Foi uma mudança crucial no processo de desenvolvimento do projeto. Antes, nós estávamos limitadas fisicamente por várias questões: de locação, de atores, espaço e, com a pandemia, isso se tornou ainda mais difícil. A animação caiu como uma luva e nos permitiu ter uma flexibilização maior ainda pra gente contar essa história, pra abrir esses espaços e trabalhar isso de uma forma muito mais grandiosa. Foi uma modificação bem interessante e positiva. A animação é uma experiência nova pra mim. Houve uma evolução, uma transformação bem bonita no processo da narrativa.”

(Relato de Anne Salles para a revista)

No entanto, havia um primeiro detalhe crucial: a Novelo também nunca tinha produzido uma animação. Como seria viável sair desta não-estrutura e criar toda uma logística de trabalho com novas contratações e redefinir o sistema de rotina, tudo isso diante de tantas dificuldades e limitações impostas pela pandemia?

Pois bem. Enquanto neurônios procuravam maneiras de tornar mais consistente aquela ideia tão inusitada e complexa, Ana Paula convida Luiza Guerreiro, sócia e produtora executiva da Plot Kids, um promissor e premiado estúdio de animação e desenvolvimento de jogos, também estabelecido na capital, para a execução da animação do filme. Novamente, então, Nonna se abre a uma parceria imprescindível a fim de evoluir e se ressignificar. Marcando, assim, o renascimento de um projeto que, impulsionado pelas inevitáveis e vociferadas urgências da natureza, aprendeu outras formas de respirar a partir dos movimentos de sua própria organicidade.

Ao imaginar um mesmo filme feito nos dois formatos, são muitas as diferenças que valem ser ressaltadas A começar pela diegese, pois, se pensar quadro a quadro, a relação com o tempo das ações de cada cena muda consideravelmente. É preciso compreender de que maneira o roteiro e a decupagem podem criar equivalências nos dois formatos. Na animação, mesmo que se trabalhe com os programas mais atuais, intuitivos e facilitadores, deve-se considerar o tempo que se consome em vários processos: criação, ilustração, animação e estruturação das cenas são etapas razoavelmente intensas e extensas, pois demandam uma energia específica e detalhada a cada quadro. A matemática é muito mais presente e exposta neste formato. É necessário pensar com muita minúcia, consciência, criatividade e inteligência econômica. E, respeitando o baixo orçamento, o tempo despendido e os equipamentos caríssimos utilizados, geralmente são projetos que envolvem uma equipe menor e altamente especializada. No live-action, também há vários cálculos, até porque o custo total ainda é alto. Mas o fato de as personagens serem fisicamente humanas, ou seja, possuírem autonomia dos movimentos, expressões, acting e interações; de a produção envolver uma quantidade maior de profissionais com funções específicas, bem direcionadas, todos trabalhando em sincronia e ainda haver equipamentos de fotografia, retornos para a direção, som, produção, arte, dentre outros que permitem gravar vários minutos de um mesmo plano (muitas vezes, de uma cena inteira), tudo isso, teoricamente, tende a tornar a logística de set bem mais dinâmica. E, por consequência, um tempo maior de filme rodado. Pode-se dizer que este formato possui mais margem de erro e de sobras de edição com relação à quantidade de quadros a se desperdiçar. Em contraponto, também não se pode esquecer de que, independente do formato, quanto maior a equipe, maior a complexidade na gestão e, por consequência, mais desafiador é o domínio sobre todo o desenvolvimento da produção.

Retornando ao Nonna, o projeto sofreu transformações bastante expressivas. Por conta das inúmeras demandas específicas, toda uma equipe foi estruturada dentro da Plot Kids. Luiza Guerreiro passa a encabeçar a produção de animação juntamente com Vladimir Medeiros, este que também assume a produção de linha e Nina Pinho assume a direção de animação e de arte. Além de uma composição com mais 6 animadores, 3 ilustradores, 1 rig, 1 finalizador, enfim, vários profissionais capacitados.

“No início, não foi fácil criar esta estrutura, pois com as restrições da pandemia, saíram 10 funcionários da empresa. A junção da minha experiência com a da Nina ajudou todo o trabalho exaustivo de pré-produção, nas adaptações, especialmente. A Nina criou de forma bem profunda e dinâmica toda a concepção. Todos os concepts originais de personagens e a maioria dos cenários são dela.”

(Relato de Luiza Guerreiro para a revista)

Model Sheet da personagem Ana (Créditos: Nina Pinho)
Model Sheet da personagem Ana (Créditos: Nina Pinho)

Desde sempre, a casa da história tinha uma relação muito forte com a Ana, a personagem principal.

“A casa é muito importante pra história, ela é uma personagem porque faz uma conexão do legado, da história que a Ana tem com a avó. Ela também serve justamente pra fazer essa elipse da passagem do tempo. A gente vai ver como essa casa era antes e como ela é depois com toda a transformação que ocorre nela e a transformação no entorno dela também.”

(Relato de Anne Salles para a revista)

Uma curiosidade é que, em live-action, após muita procura, a Novelo tinha encontrado a casa perfeita. Mas quando estava para fechar o negócio da locação, não foi possível chegar num consenso quanto ao valor do aluguel. Tiveram que desistir. Com a mudança para animação, a Nina criou a casa inspirada nessa locação dos sonhos pro filme.

“Então, foi preciso criar todo esse universo da casa, do local, das personagens e a Maria, enquanto diretora, deu muita liberdade para que eu pudesse criar tudo isso.”

(Relato de Nina Pinho para a revista)

Trecho do storyboard do curta-metragem Nonna
Trecho do storyboard

“É a primeira vez que eu faço direção geral de uma animação, tenho aprendido muito com esta experiência. O mais desafiador é imaginar o todo pra conseguir criar a decupagem sem ver o processo.

Como artista plástica, foi outro desafio bastante interessante, pois a minha arte é mais chapada nas superfícies e entender como funciona o processo de uma animação em 2D cria outro entendimento e perspectiva, outra relação interna. Fico observando os layouts que a Nina cria e como ela transita nos storyboards.”

(Relato de Maria Augusta V. Nunes para a revista)

No Nonna, não há uma figura específica na direção de fotografia. As definições desta função têm sido feitas entre Nina, a diretora de animação, e a diretora Maria Augusta. Em live-action, tinha o conceito da câmera que seguia em planos longos. Havia algo de um cinema de Tarkovski. Foi quando Maria decidiu que queria dirigir o projeto. Na animação, isso teve que ser adaptado.

“Para fazer uma animação, precisa ter os planos bem definidos e rápidos. Foi necessário um bate e volta bem extenso com a Maria sobre a definição de todos os planos para criar o animatic.”

(Relato de Nina Pinho para a revista)

Cena final do curta-metragem Nonna
Cena final

Com o animatic pronto, são os animadores que assumem a próxima etapa. Todo o processo de animação passa por 4 a 5 diferentes softwares.

“O problema de criar em 2D é que todas as vistas das personagens, das expressões precisam ser desenhadas quadro a quadro. E o filme é feito em 30 fps. Outra informação importante é que precisa de pelo menos 3 ilustradores que ilustrem no mesmo estilo.”

(Relato de Nina Pinho para a revista)

Para a animação, a equipe trabalha sob a técnica do cut-out, que consiste em desenhar separadamente todas as partes do esqueleto da boneca e, a partir daí, consegue construir todos os movimentos (mexendo em cada parte isoladamente ao longo dos frames).

“Quando a equipe da Novelo viu o primeiro clipe de uma cena pronta, quando a nossa protagonista Ana piscou, foi muito emocionante: ‘Ela tá viva!’”

(Relato de Ana Paula Mendes para a revista)

Em paralelo aos desenvolvimentos internos do filme na Plot Kids, o Estúdio Urbano entra como parceiro pra gravar as falas das atrizes, os sons, fazer os ambientes sonoros e a mixagem.

“Trabalhar com o Estúdio Urbano tem sido muito positivo pro projeto. Foi uma indicação da Plot, que possui uma longa trajetória em conjunto com eles, então passou muita confiança pra gente de que tanto a dinâmica de trabalho quanto o resultado seriam muito bons!”

(Relato de Ana Paula Mendes para a revista)

No que se refere à música original, após uma grande pesquisa, é convidado o artista Pedro Santiago para realizar a composição. Ele aceita e desenvolve junto da Novelo uma troca bastante acertada, dedicada, profunda e com muita intenção.

“Em relação à trilha sonora, estamos muito felizes de ter conseguido trazer o Pedro Santiago pro filme e iniciar uma relação de trabalho que espero que se repita muitas vezes. A Maria tinha em mente uma sonoridade que misturava cordas, viola, e sintetizadores (o que chamamos internamente de ‘elementos de sci-fi’), e o Pedro absorveu isso de forma muito rápida e fluida. Sentimos que o filme cresceu muito com a música dele, que tem muita personalidade.”

(Relato de Ana Paula Mendes para a revista)

O elenco, que é cem por cento feminino, é composto por 4 atrizes bem especiais: Nina de Menezes Martins como Ana, Nenê Borges como A agricultora, Cameron Venture como Elisa e Elaine Sallas como A radialista.

Para quem não sabe como funciona o processo de animação, uma curiosidade interessante é que geralmente as falas são feitas antes de animar as personagens de forma totalmente independentes. Ou seja, não há necessidade nem dos storyboards para as gravações. Precisa-se basicamente do roteiro, de alguma referência visual, de bons ensaios, da direção, e do técnico de som orientando o elenco.

“Primeiro, a gente gravou as vozes e depois eles criaram a animação em cima das vozes. Tão fazendo ainda. Isso foi muito diferente. Porque a gente fez vários testes da mesma fala, tipo, agora, um pouco mais rápido, agora, um pouquinho mais devagar, agora um pouco mais baixo, agora um pouco mais alto, agora um pouco mais pra fora, agora, um pouquinho mais pra dentro. Daí, a gente foi fazendo vários destes testes pra, na hora da animação, ter várias opções. E eu não tinha muita ideia de como era a animação. Tinha uma foto, um desenho das personagens todas juntas pra gente saber como era a personagem da Nenê, a personagem da Cameron, como seria a minha personagem. Eu achei legal que tinha a minha personagem pequena e a adulta próximas, dava pra ter noção da evolução. E dava pra imaginar se a personagem era alta, se a personagem era baixinha, tipo, a Ana é uma personagem baixinha. Ela já adulta parece ter corpo de adolescente. Dava pra ver a roupa basicamente de todas as personagens e como elas eram visualmente. Eu acho que a Nonna também era bem baixinha e a pele dela tinha os efeitos dos agrotóxicos.”

(Relatos de Nina de Menezes Martins para a revista)

Nina de Menezes Martins, atriz que interpreta Ana (Créditos: Jean Gengnagel)
Nina de Menezes Martins, atriz que interpreta Ana (Créditos: Jean Gengnagel)

Essas vozes que, na verdade, trazem muito mais do que apenas o som das falas, criam a alma das personagens. Se não há uma entrega à persona, uma dedicação a um perfil elaboradamente denso da personagem, não haverá mergulho. Evidente e sensivelmente, isso ficará explícito na cena.

“Algumas pessoas pensam que quando você dubla você faz isso simplesmente parada olhando pra tela, mas não, você também tem que ter toda uma expressão de corpo pra aquilo ficar mais natural, né, seja na hora de cumprimentar, seja na hora de você ter alguma dúvida. Você faz cara de dúvida, mesmo que não esteja sendo filmada porque isso faz você entrar mais na situação da cena.”

(Relatos de Cameron Venture para a revista)

Cameron Venture, atriz que interpreta Elisa (Créditos: Jean Gengnagel)
Cameron Venture, atriz que interpreta Elisa (Créditos: Jean Gengnagel)

Com os cuidados intrínsecos à pandemia, foi preciso pensar na logística de como gravar com as atrizes e a equipe técnica a fim de evitar ao máximo a exposição de todos. As gravações foram realizadas em apenas uma tarde,e os ensaios foram feitos virtualmente.

“No total, tinha menos de 8 pessoas dentro do espaço, que eu me lembre. Então foi muito tranquilo. A gente gravou em poucas horas, não foi um trabalho muito cansativo ou estressante por causa do uso da máscara. Até, em algumas cenas, nós usamos a máscara pra conseguir fazer algumas vozes específicas. Então, as questões de pandemia foram bem tranquilas dentro deste projeto”.

(Relatos de Cameron Venture para a revista)

A pandemia e a transição para animação fizeram com que o corpo do elenco também sofresse algumas mudanças por questões do processo de realização. Nina, que tem apenas 10 anos, e já iria interpretar a personagem Ana criança (no passado), é convidada a realizar as duas fases da mesma personagem: a criança e a adulta (no futuro).

A gente fez vários testes. Fiquei tentando fazer uma voz mais infantil. Mas não fiz uma voz mais aguda, fiz uma voz mais forte, mais firme, sabe!? (…) Então, eu forcei mais a minha voz pra fazer a infantil do que pra fazer a adulta. Pra fazer a adulta, eu usei a minha mesmo. Mas também foi difícil achar o tom certo. Fizemos vários e vários testes, fazia o tom um pouquinho mais fino, depois um pouquinho mais grave, daí, a gente foi tentando. E no dia que a gente foi pro estúdio, a Maria viu como ficavam as variações até achar o tom certo.”

(Relatos de Nina de Menezes Martins para a revista)

Sem entrar em méritos interpretativos, é interessante refletir sobre o tamanho do desafio presente no trabalho técnico da Nina. Pois, apesar da vantagem de ela estar na transição da idade entre a infância e a adolescência, ou seja, sua voz se modula mais facilmente para as duas fases da personagem, fazer a voz de uma criança um pouco mais nova parece ser algo mais natural, está lá na memória dela, ela já viveu essa voz, né?! (Mesmo que inconscientemente ela a negasse, como muitas crianças fazem nesta idade porque desejam crescer rapidamente). Porém, a da adulta, por mais que o timbre esteja mais próximo da voz dela no presente e ela tenha convívio com várias mulheres adultas, se trata de uma voz que é uma projeção da Nina do futuro. Com isso, os campos imaginativo e temporal precisam se permitir muito mais para alcançar o objetivo, né?! Se abrir.

Outro ponto instigante do acting de animação é justamente esta brincadeira na modulação, na expressividade da própria voz, nas diferentes formas e na escolha de palavras que se pode expor em um mesmo texto com variadas interpretações.

“É muito louco imaginar outras vozes além da que você usa no seu dia a dia e que ela fique tão natural em outra imagem. A personagem da Elisa tem um vocabulário bem diferente do que eu estou acostumada a usar no meu dia a dia. No vocabulário do curta, não tem gírias ou expressões locais e tudo o mais, a forma de cumprimentar é diferente. Então, sempre tinha esse exercício. E como eu já tinha lido o roteiro várias e várias vezes, eu ficava pensando muito nisso, né: ‘Ok, eu (Elisa) trabalho numa fábrica. Eu (Cameron) nunca trabalhei em uma fábrica! Ainda mais de engenharia ambiental.’ E fiquei imaginando como eu cumprimentaria meus colegas: ‘Ah, ok, dessa forma, dessa forma e dessa forma.’ E durante o processo das falas, enquanto eu e a Nina fazíamos os ensaios via chamadas de vídeo, a Maria ia mudando algumas expressões porque ela percebia que não ficava muito natural. Aí, eu perguntava: ‘ah, posso falar desse jeito, acho que vai ficar mais natural’. Aí, a gente mudava lá no roteiro. (..) Eu gostei bastante de trabalhar com a Maria. Nunca tinha sido direcionada desta forma e tudo o mais, e foi muito interessante descobrir tons da minha própria voz que eu não sabia que indicavam algo. Porque, durante o teste, eu dava a fala em tal tom de tal forma e a Maria falava: ‘Ah, você falando dessa forma parece que você não está sentindo isso’. E eu: ‘Sério??’ E a Maria: ‘Sim. Ó, desta forma agora, parece que você está sentindo isso.’ Eu achei tão interessante que gostaria de ter outras experiências assim.”

(Relatos de Cameron Venture para a revista)

Uma transposição essencialmente descontraída que ocorreu com a mudança de formato foi a da personagem escolhida para a Nenê Borges interpretar.  

“Eu tinha as meninas da Novelo nas redes sociais. Eu participava de um grupo político com elas na época das eleições. Foi onde nos conhecemos. A produtora delas, a Tati, me convidou pra fazer um papel no Nonna. Eu fiquei muito feliz. Sempre quis trabalhar em um filme da Novelo. E era pra fazer a Nonna. (…) Ela não tinha falas. Aí, peguei o roteiro, li e pensei ‘vou fazer da melhor maneira o possível.’ (Rsrs) Mas aí quando li o roteiro de novo, vi a personagem da agricultora, pensei tanto que queria fazer esta personagem. E aí veio a Covid, e pensei que o filme não ia rolar. Passou um bom tempo desde a última conversa. E a Ana ligou e disse que a Maria Augusta queria que eu fizesse um teste pra agricultora. Aí, me realizei! Fiquei muito feliz! Mudamos algumas coisas por causa do meu sotaque do interior de São Paulo. Ensaiei sem ver o desenho da personagem. Só vi o desenho no dia do estúdio. Num dos ensaios, eu apareci caracterizada, vestida de lavradora, com um lenço na cabeça e uma camisa de botão até o punho. Tivemos dois ensaios, depois fomos pro estúdio e gravamos.”

(Relatos de Nenê Borges para a revista)

Nenê Borges, atriz que interpreta a Agricultora (Créditos: Jean Gengnagel)
Nenê Borges, atriz que interpreta a Agricultora (Créditos: Jean Gengnagel)

Para o elenco, atuar numa animação dá vazão a uma incógnita e a uma expectativa bem elevadas. Quando você atua para uma personagem de animação, a sua imaginação enquanto atriz/ator tem a possibilidade de se ampliar muito, de se redimensionar para uma infinidade de camadas, justamente porque a sua imagem passa a se ressignificar também. Visualmente, a sua personagem pode ser algo tão distante do que você é enquanto figura individual que se o seu nome não estivesse nos créditos, talvez muitos nunca descobrissem que foi você a dar alma para aquele novo ser.

“Eu fico sonhando com essa estética de me perguntar como é que vai ser o Nonna? O que vai trazer? Quais são as cores? Porque você faz a voz e fica esperando todo esse molde que vem em volta pra preencher. Então, vou te contar uma história muito curiosa sobre isso. Que tem a ver com a minha história de vida mesmo. Eu não conheci meu pai. A história, a lenda que se conta é que eu sou filha de um radialista da década de 80, muito famoso, se procurar no youtube, você acha a referência dele. Então, a minha história de vida se cruza muito com da onde vem essa veia artística que a Elaine tem, sabe?! Então, quando eu chego nesse lugar dessa memória desse pai que eu não tive, eu vou ouvi-lo. Pego os programas de rádio dele na internet e fico ouvindo. Uma entrevista que ele deu, como o cara falava. Nem sei se o cara é meu pai de verdade, mas, enfim, peguei esse imaginário aí, né!? E aí, quando veio de eu fazer uma personagem do rádio, eu fui buscar a referência lá nele primeiro, né?! E ouvi como é que, na década de 80, o cara teve mais de 1 milhão de ouvintes no estado de SP inteiro. Ele era muito conhecido. E então, fui buscar referência de uma voz de radialista porque eu não tenho essa formação. Eu tenho uma voz legal que combina pra apresentar algumas coisas, mas tem macetes técnicos que você precisa ter. Daí, eu passei uns dois dias ouvindo várias mulheres radialistas do Brasil inteiro pra ver como é que criavam essa ambiência. Então, se você der o texto assim você consegue o código tal. E fiquei lá me divertindo. Mas também pensei ‘Nossa! As radialistas da cidade são muito informais.’ Porque é diferente de você ser radialista de uma cidade pequena em que todo mundo te conhece, do interior. Então, eu tentei encontrar uma medida de ser essa apresentadora que é próxima, mesmo que ela tenha que dar uma notícia que seja ruim, fazer um convencimento que não seja politicamente correto, mas é uma pessoa que vai ler um bilhete de amor lá, daqui a pouco, sabe?! Eu tentei brincar um pouco com isso. E imaginar como é que as pessoas vão receber esta voz. Pra mim, isso foi uma das coisas mais importantes, né, pensar nesse público alvo, nesse público ouvinte dessa rádio dessa cidade do interior que acorda todo dia de manhã e a companhia às vezes é só o rádio. E que é a história de muita gente que trabalha com a terra no interior e se informa do mundo a partir dessa perspectiva. Então, eu criei essas outras personas externas, né, pra garantir que a minha voz convencesse de alguma forma esse público. Porque acho que, sem isso, eu não conseguiria só imaginar a personagem sem saber a interlocução da personagem. E aí, foi divertidíssimo, porque aí eu falei ‘agora, eu sou filha do meu pai mesmo, né, porque agora eu tenho uma personagem radialista.’

(Relatos de Elaine Sallas para a revista)

Elaine Sallas, atriz que interpreta a Radialista (Créditos: Jean Gengnagel)
Elaine Sallas, atriz que interpreta a Radialista (Créditos: Jean Gengnagel)

“Nonna é um projeto muito generoso e que carrega um pouco de cada um e cada uma que participou da sua realização, em todas as etapas. E tem sido muito lindo acompanhar o processo dele em se tornar um filme, o que vem acontecendo dia após dia, de pouquinho em pouquinho. Temos reuniões semanais com o estúdio de animação, e a cada semana temos algum elemento novo – uma nova cena animada, um novo cenário finalizado, um novo trecho de música, etc. É interessante o processo de acompanhar essa evolução de forma espaçada, porque no live action tudo acontece muito freneticamente, especialmente para a produção. Estou muito feliz com a trajetória deste projeto e com o resultado que estamos alcançando junto desses super talentos que conseguimos envolver na sua realização.”

(Relato de Ana Paula Mendes para a revista)

Quando iniciei esse texto puxando os desdobramentos dos tempos, ressignificações e transfigurações que um filme pode ter ao longo do seu processo de concepção, projeção e concretização, me veio muito forte o quanto esta distensão criativa e livre é poderosa e necessária em qualquer forma de arte. Seja no simples fato de permitir que seus pensamentos e reflexões fluam para além do convencional, do que se espera daquilo que se provou um dia funcional.

Uma pandemia não é algo que se imagina acontecer no seu período de vida. Menos ainda quando se está no meio de um projeto de trabalho que é pago com financiamento público e, por isso, precisa ser finalizado e ter suas contas prestadas.

No entanto, quando há intenção, potência, sustentação, coletividade e coragem, é possível deixar que uma fenda se abra para o improvável, mesmo dentro de tantas restrições que uma pandemia pode impôr. Mais ainda se você está vivendo a pior era política que o seu país já acumulou na História.

Nonna nem foi a público ainda, mas já é um manifesto. É por existir. É por conseguir resistir. É por se reinventar. E é, especialmente, por trazer em sua história mulheres sensíveis e fortes que lutam no campo, pela vida e pela terra contra toda a destruição provocada pelas ambições do agronegócio.

Vanessa Rosa Gasparelo

Bacharel em Cinema (UFSC), é roteirista, diretora geral, assistente de direção e edição, continuísta, pesquisadora, projetista, crítica de cinema e produtora cultural. Mergulhou na continuidade de projetos no triângulo São Paulo, Florianópolis e Rio de Janeiro, destacando os “Spectros” (Netflix EUA, 2020), “Helen” (Prosperidade Content, 2020), “Viaje Inesperado” (Co-produção Brasil/Argentina, 2018), e “Guigo Offline” (Boulevard Filmes, 2017). Trabalhou como produtora de objetos em “Pequeno Segredo” (Schurmann Produções, 2016) e “O Tempo que Leva” (Novelo Filmes, 2013). Seu projeto mais recente é o curta-metragem “Pele Negra, Justiça Branca” (Cordilheira Filmes, 2020), co-roteirizado e co-dirigido por ela e outras duas mulheres (Cinthia Creatini da Rocha, Valeska Bittencourt) em parceria com o Movimento Negro Unificado – SC (MNU).

7 comentários em ““Nonna”, as transfigurações e as ressignificações dos tempos”

  1. Ana Paula Mendes

    Que lindo! Muito obrigada, Vanessa e Além da Imagem!!! Que alegria esse espaço e a oportunidade de falar sobre nosso filme amado NONNA.

  2. Parabéns a revista, muito bom conhecer os processos criativos da equipe e do elenco . Que venham muitas edições. Força ao audiovisual.

  3. Elizabeth Tietê Tiritan

    Parabéns Querida!!! Em meu nome é de meus pais. Temos vcs, com imenso amor é orgulho, vivendo em nossos caminhos. Avante!!! Pulse!!! Nos represente criando sobre esse momento de tanto descaso e ignorância. Necessitamos das Artes. Gratidão.

  4. Que matéria linda! Parabéns à Vanessa, à revista Além da Imagem e à Novelo. Nina está muito orgulhosa de fazer parte deste lindo projeto!!

  5. Karine Rosa Gasparelo

    Parabéns VanVan, grande talento! Muita satisfação, alegria e orgulho em poder acompanhar boa parte da sua trajetória! Felicitações a todas essas pessoas maravilhosas envolvidas no projeto! Incrível ver o desenrolar deste trabalho em meio a tantas adversidades e ao caos que estamos vivendo. Sucesso! Não vejo a hora de poder apreciar essa novidade…

  6. Como diz uma música de um grande amigo “as coisas importantes combinam pra se encontrar na sua vida”, o projeto Nonna converge muita gente linda e que admiro, pessoas com saberes e poiesis diferenciadas. Trabalhar com a Novelo Filmes, mais uma vez é uma honra, Ana Paula Mendes conduz com primazia a produção, Maria dirige com a paixão mais doce que já vi numa cineasta, poder estar num projeto junto a Nenê Borges atriz admirável é um bálsamo. Poder conhecer Cameron e Nina dando vida a outras personagens é reascender a chama da desafiadora novidade. Tudo isso amarrado nesta potente reflexão que a Vanessa nos apresenta. Lembro que no dia da nossa conversa os olhos da Vanessa brilhavam muito, demonstrando o quanto estava imersa nos tons, traços e cores do Nonna. Vanessa resignificou também os tempos de nossas vivências, a camada do afeto, da técnica, do experimento e da arte e nos brinda com essa beleza de escritos. Que venha o Nonna e possamos celebrar o quanto transfiguramos nestes tempos. Viva o cinema brasileiro, viva a mulherada porreta do projeto, viva a luta por uma Arte que reflita nosso tempo. Parabéns a todas! Honra caminhar com vocês.

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